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09/02/2010 - 08:52

Na biblioteca

Aquele ar vetusto tinha um quê indescritível. Sen­tado no seu lugar habitual, após ter preenchido a relação de livros que desejava, olhava pacientemente o teto e as luminárias de néon. Com a proximidade do vestibular, não tinha mais paciência para assistir às aulas do cursinho. Eram divertidas, mas a sala, com uma centena de concorrentes, pálida amostra do que seria o confronto maior, já era pequena demais para ele. Sentia-se sufocado. Além disso, uma imagem cruel o obcecava. Via-se pisando sobre as cabeças dos cole­gas, para alcançar o portão imaginário de uma facul­dade, sabe-se lá qual. Precisava manter, ao mesmo tempo, a garra e deixar de olhar para seus rivais.

Digeria sem grandes problemas tudo o que os pro­fessores se esforçavam para transmitir. Fórmulas, formuletas, macetes, truques mnemônicos, cantorias, o vale-tudo perfeito. Só que todos, enfim, todos os mais capazes estariam por dentro dos mesmos segre­dos. Precisava de algo especial para criar a diferença, para que outros não pisassem sobre a cabeça dele. Sabia que, em caso de dúvida, nos últimos minutos teria de chutar, deixando para o acaso completar as lacunas de seu aprendizado. E novamente a dança infernal das fórmulas o envolvia: o período do pêndulo simples, o equilíbrio no calorímetro, a regra de Sar­rus, a fórmula da elipse, um sobre quatro pi épsilon... Tudo organizado, mastigado por profissionais, trans­formado numa enorme diversão, numa farra.

Para a redação, sempre frases curtas, inserindo, se possível, uma ou outra frase de efeito já preparada e pronto! Sentia que não era o suficiente. Era necessá­rio; contudo, poderia não ser suficiente. O espectro da nota de corte, ameaça impossível de definir, não lhe dava paz. Tinha que achar um meio de se sobressair.

Assim surgiu a idéia de estudar na biblioteca. Na­quele ambiente tranqüilo, contrastando com o meio insuportavelmente barulhento em que se transfor­mara o cursinho no calor da reta final, esperava en­contrar o diferencial que o propulsaria para os sonha­dos bancos da faculdade.

O que faria depois era um outro problema. Sabia que naquele instante não poderia falhar. Não teria estrutura para suportar olhares de comiseração e... A pilha de livros já estava em cima da mesa. Era o dia de rever Mecânica. Abriu, ao acaso, o livro e começou a ler. O plano inclinado... claro, gê seno alfa. Repetiu mecanicamente. Daqui a milênios a fórmula será ainda a mesma. A mente já estava longe. Após alguns minutos, teve a sensação de estar sendo observado. Levantou os olhos e ficou atônito.

Sentada à sua frente, uma jovem, que poderia ter alguns anos a mais que ele, aliás uma certeza, olhava-o. Rosto bonito, cabelos castanhos, curtos, vestido estampado, boca carnuda e um par de olhos azuis imensos, fitando-o intensamente. Poderia ser apenas uma impressão. Continuou teimosamente a leitura e, depois de alguns instantes, levantou brus­camente os olhos. Ela estava fazendo anotações num caderno espiral, aparentemente absorta em sua tarefa. Ficou olhando por alguns instantes no vazio, implorando mentalmente para que ela o olhasse e mais uma vez os olhares se cruzaram. Ela estava fazendo o mesmo jogo! Desta vez sentiu-se pregado na cadeira. Nada comparável com os namoricos que havia experimentado até então. Estava literalmente cativado. O compêndio à sua frente já não o interes­sava mais e os preparativos para a competição sem quartel que o aguardava, poderiam esperar alguns minutos. Acompanhava fascinado os gestos da mu­lher à sua frente. Reparou a aliança na mão esquerda e voltou a detalhá-la. Pareceu-lhe ainda mais bonita, ao morder os lábios, enquanto se digladiava com al­gum mistério sepultado no livro que estava lendo. Ela o olhou e, de repente, sentiu que seu rosto se incen­diava. A reação não deve ter passado desapercebida e lhe valeu um sorriso irresistível. Retribuiu.

Arriscou um “Oi, como vai”, cujo resultado foi um “shih” irado do vizinho. Lembrou-se divertido da frase de Oscar Wilde preparada para a redação do vestibu­lar: “num concerto pedem-nos para ser mudos, quando gostaríamos de ser surdos”. Teve que ficar quieto, os outros demonstravam não ser surdos.

Ela parecia achar graça de tudo. Gratificou-o com o mais encantador sorriso cujo efeito foi subjugá-lo de­finitivamente. A seguir, destacou um pedaço de papel da última folha do caderno, escreveu algo, dobrou o papel e lhe entregou. Levantou-se. Ele fez menção de fazer o mesmo, mas um gesto e um sorriso dela o imobilizaram. Talvez nem tivesse forças para se le­vantar. Ela apanhou o livro, devolveu-o no balcão e, ao sair, já perto da porta, fez-lhe um sinal de adeus.

O bilhete continha um número de telefone, e a menção “Depois das 19h, Lúcia”.

Enfiou maquinalmente o bilhete no bolso e conti­nuou olhando o livro à sua frente, sem conseguir pro­gredir na leitura.

Agora, às vésperas de sua mudança, enquanto es­tava separando roupas que já não lhe serviam, ao vasculhar os bolsos, encontrou numa dobra do forro o pedacinho de papel teimosamente escondido por mais de dez anos com um inútil número de telefone de seis algarismos. Acabara de perdê-la pela segunda vez, ao reencontrá-la.

. Porf: Alexandru Solomon | Crônica do livro ´Apetite Famélico`, Ed. Totalidade. Disponível na livraria Pega-sonho (Rua Martinico Prado, 372 – Higienópolis – SP – Tel.: (11) 3668-2107).| E-mail do autor: [email protected]

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