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08/05/2012 - 10:44

O dia seguinte (Prece para uma mãe)


Ela era uma das últimas árvores. Estava seca, sofrida e seus galhos, sem folhas, estavam quebradiços a qualquer movimento. Fazia tempo que não chovia naquele mundo e toda a exuberância verde do passado só existia na sua memória. Suas raízes buscavam nas profundezas, qualquer resto de umidade, mas até os poços artesianos tinham se esgotado naqueles tempos áridos. Ela sabia que era uma das últimas a permanecer em pé naquele mundo sem vida. Por séculos ela desfrutara da amizade de todas as outras árvores, das gotas de orvalho, dos pequenos animais do bosque e dos duendes. Ah, os duendes! Ela se lembrava das grandes algazarras que aqueles seres brincalhões promoviam debaixo de sua sombra protetora. Eles eram alegres, incapazes de fazer mal a qualquer forma de vida, porém eles também haviam desaparecido e, agora, era só silêncio.

Não existia um só local para resistir ao grande calor e todos tinham sucumbido, uns após outros. Só restaram algumas poucas árvores, insistentes como ela, e um homem estranho. Ele vinha todos os dias e falava coisas absurdas: dizia para resistir, que as coisas voltariam a ser como foram um dia e que ainda haveria de cair água dos céus. Não entendia como ele ainda vivia, sem se alimentar, sem água, sem amigos, sem nada, mas lá estava ele, com seu corpo esquelético, recoberto de pele ressecada, para visitá-la todos os dias. A paisagem, outrora cheia de cores, agora tinha somente um tom amarelo dourado. Durante todos os dias sempre a mesma cor e as noites, cheias de estrelas, não mais existiam.

A lua, no passado, tão fria, alva e romântica, transformou-se em um segundo sol, fazendo com que a escuridão desaparecesse por completo. Ela se lembrava do dia em que as explosões começaram; em seguida veio o calor, a cor amarela, o novo sol que trouxe o dia permanente para o mundo inteiro. A vida foi se acabando rapidamente e, em alguns poucos meses, tudo foi reduzido a cinzas cor de ferrugem. Ela sabia sobre a existência de grandes ruínas que, por muito tempo, exalaram odores fétidos como nem as piores cisternas produziam, mas, agora, até a fetidez das grandes cidades já havia desaparecido. Era um mundo sem odores, era um mundo moribundo. Mas lá estava ela e o estranho! Por ironia do destino, quiseram os deuses que aquele mundo cheio de vida e belezas, terminasse reduzido a uma grande árvore seca e um estranho homem que falava com ela todos os dias.

Ela se lembrou do tempo em que os duendes se reuniam aos seus pés e de quando um deles arrancou um grande cogumelo vermelho de suas raízes e, mostrando para os demais, falou com voz solene:

? Eu tive um pesadelo! Nele, eu vi cogumelos gigantes e vermelhos como este inundarem os céus. E todo nosso mundo foi ferido mortalmente.

Todos ficaram em silêncio, pois os duendes davam muito valor aos sonhos. Recordou também que, deste dia em diante, eles olhavam para os grandes cogumelos vermelhos com receio, como quem está vendo uma maldição. Eles não sabiam os motivos, mas passaram a temê-los. Agora, todos mortos, não saberiam nunca mais do quanto estavam certos. Mas a árvore e o estranho, estes sim, sabiam da verdade.

Naquele dia o homem chegou mais cansado e quase não falou. Sentou-se ao pé da árvore, encostou suas mãos ressequidas no caule queimado e começou a sussurrar uma prece engasgada em sua garganta:

Grande Mãe! Por que permitiste a geração de monstros em teu seio? Por que deixaste o mal avançar tanto nos teus domínios? Poderia tê-los detido e não o fizeste. Poderias ter evitado a morte de seus outros filhos como os duendes, as árvores e os animais. Mãe! Por que poupaste a mim e a esta minha amiga sofrida? Escuta minha prece! Conceda-nos a morte para não assistirmos a mais um dia deste teu desalento. Mãe que sempre fizeste tudo por teus filhos, sem distinção, sem se importar se viviam nas águas dos agora secos mares ou se nas antigas e férteis terras, se tinham duas, quatro ou oito pernas e se andavam eretos, deitados ou voavam por entre as nuvens de teu outrora belo céu. Tenha piedade destes pobres que sobreviveram à desgraça que um dos teus filhos criou e livra-nos de mais um dia de vida neste inferno. Mãe! Escuta a súplica deste teu filho.

A árvore ouviu a prece e sentiu que o estranho era bom. Ela conhecera, durante sua vida, muitos homens bons. Ela tentou consolá-lo nesse momento dramático e um pedaço de galho seco caiu bem ao lado do estranho. Ele abraçou a árvore, fechou os olhos e desejou, do fundo do seu coração, que a morte os levasse, para bem longe deste inferno. Assim ficaram, em silêncio, por várias horas, até que os primeiros pingos grossos de chuva quente começaram a cair na terra ressequida. O estranho abriu os olhos e olhou para o céu! Lá em cima, o antigo e verdadeiro sol estava se pondo e a imagem de uma lua esbranquiçada e fria começou a aparecer timidamente no firmamento. Neste instante, outro pedaço de galho seco caiu ao seu lado. O estranho apertou com mais força a sua amiga e entendeu que a Mãe escutara sua prece.

Por: Célio Pezza, escritor e autor de diversos livros, entre eles: As Sete Portas, Ariane, e o seu mais recente A Palavra Perdida. | www.celiopezza.com| Blog do Autor: celiopezza.com/blog.

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