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07/09/2013 - 07:03

O direito de acesso irrestrito aos códigos-fonte dos programas de computador

O comércio de softwares, seja o licenciamento do uso, seja a transferência da propriedade, não é certamente uma atividade econômica recente, razão pela qual seria de se esperar que os usuários em geral já tivessem adquirido algum conhecimento sobre as peculiaridades que envolvem esse tipo de produto.

Entretanto, em que pese não se tratar de um assunto novo, não é raro nos depararmos com discussões judiciais envolvendo um ou outro aspecto da aquisição e utilização dos softwares, embates que, transcorridos tantos anos desde a popularização dos aplicativos, ainda tomam os tribunais.

Nesse sentido, uma das questões que ainda gera controvérsia diz respeito ao acesso, pelos usuários, às senhas e/ou códigos-fonte dos programas de computador, elementos que são normalmente detidos com exclusividade pelos fabricantes.

Explica-se: ao contrário do que ocorre com outros produtos, a posse do software nem sempre permite ao usuário interagir com todos os recursos do programa. É comum, assim, que apenas algumas funcionalidades sejam liberadas pelo fabricante, que reserva para si a senha ou os códigos-fonte que dão acesso a funções específicas, sobretudo relacionadas à manutenção, alteração ou atualização do sistema.

Nesse contexto, não é raro que algum usuário, ignorando os termos do contrato de software, procure o judiciário justamente para obter uma decisão que obrigue o fabricante a fornecer a senha ou os códigos-fonte que possibilitem o seu acesso irrestrito a todas as funcionalidades do programa.

Como fundamento, o usuário geralmente alega que precisa realizar a manutenção do produto que adquiriu ou mesmo adaptá-lo a um novo hardware ou procedimento interno. Argumenta, ainda, que a posição do fabricante no sentido de exigir o pagamento de contraprestação pelos códigos-fontes, ou pelos serviços que estes permitem serem realizados, constituiria “venda casada”.

Não obstante a aparente força do argumento, que classifica de antijurídica a negativa do fabricante de permitir que o usuário faça a manutenção ou a adaptação do programa adquirido, muitos tribunais estaduais, com acerto, tem se atentado às peculiaridades da matéria e negado os pedidos de transferência de senhas e códigos-fontes.

Em recente caso apreciado pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, na apelação nº 0135585-40.2008.8.26.0100, o usuário do software havia entendido equivocadamente que a mera aquisição do programa e a contratação, por prazo determinado, dos serviços de manutenção/atualização, teria lhe dado o direito de exigir do fabricante os códigos-fontes do sistema.

O fabricante, contudo, comprovou nos autos que o contrato de manutenção/atualização envolvia apenas os serviços em si, jamais a cessão dos códigos que permitiam ao usuário manter e atualizar, por conta própria, o sistema. Assim, encerrado o prazo dos serviços, o usuário não possuía base legal alguma para o pedido, devendo, se quisesse, pagar pelas senhas.

Ao decidir com acerto a questão e reconhecer que o fabricante não estava obrigado a fornecer os códigos-fonte, o tribunal paulista observou os termos do contrato celebrado entre as partes, mencionando, ainda, o princípio que veda o enriquecimento ilícito em nosso ordenamento jurídico.

Com efeito, o preço ajustado pelos serviços de manutenção/atualização não contemplava os códigos, razão pela qual a sua transferência gratuita, conforme requerida pelo usuário, acarretaria, nas palavras do tribunal, “enriquecimento indevido da autora, que deve ser coibido”.

Em outra ocasião, a fim de negar o pedido de transferência gratuita dos códigos-fonte do software, o tribunal de justiça de São Paulo invocou, além do contrato celebrado entre o usuário e o fabricante, os termos da lei de proteção à propriedade intelectual do programa de computador (Lei 9.609/98).

De fato, no julgamento da apelação nº. 0015028-04.2009.8.26.0451, o tribunal reconheceu que os códigos eram propriedade exclusiva do fabricante, nos termos da Lei 9.609/98, ainda que o usuário, por vários anos, tenha contado com os serviços de manutenção do programa, que são realizados justamente por meio deles.

O autor da ação não conseguiu obter os códigos, mesmo alegando serem estes imprescindíveis à manutenção do sistema, e, consequentemente, à sua utilização, em uma tentativa frustrada de induzir os magistrados a concluir que o fabricante estaria impedindo o uso do produto que ele próprio vendera.

Na realidade, o que ocorre muitas vezes é que o usuário confunde a licença de uso conferida pelo fabricante com a pura e simples aquisição do programa, institutos juridicamente distintos. De fato, em se tratando de licença, a expiração do prazo impede que o usuário continue operando o programa e exija os códigos-fonte.

Não é raro, no entanto, que, expirada a licença, o programa permaneça instalado no maquinário do usuário, que continua a utilizá-lo mesmo assim. Nesses casos, ao constatar que depende de uma senha ou código para manter ou atualizar o aplicativo, o usuário não se acanha em ajuizar ação para obrigar o fabricante a fornecê-los.

Felizmente, já há decisões judiciais que reconhecem o equívoco, lembrando que o encerramento da licença impede que tais informações sejam exigidas do fabricante, ainda que, sem elas, o programa deixe de funcionar. É o caso, por exemplo, de decisão recentemente proferida pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul na apelação nº. 70044897759.

O usuário, autor da ação, entendeu que o fabricante estaria praticando venda casada ao cobrar pelo software e pelo código que permitiria que o programa funcionasse com um novo modelo de impressora. A transferência gratuita do código, no entanto, foi acertada e veementemente negada pelo tribunal, pois, expirada a licença de uso, o usuário sequer poderia estar utilizando o programa, com ou sem nova impressora.

O Tribunal de Justiça do Paraná também já teceu considerações pertinentes sobre a confusão entre licença de uso e transferência da propriedade do software. Na apelação nº 509.240-0, o tribunal analisou o recurso de uma empresa de médio porte que pleiteava do fabricante o fornecimento dos códigos-fontedo software, sob a alegação de que o contrato o contemplava.

Na realidade, embora o contrato nada previsse a respeito dos códigos, o usuário alegou que a expressão “disponibilizar o software”, constante do instrumento, equivaleria a “transferir a propriedade”. Alegou, ainda, que o termo “licenciamento”, também citado no documento, significaria licenciamento de propriedade, razão pela qual, sendo o dono do programa, também o era de seus códigos.

Foi com acerto que o tribunal, com base da lei 9.609/98, estabeleceu que a expressão “disponibilizar” jamais poderia ser sinônimo de “transferir a propriedade”. Os desembargadores também reconheceram que, embora a expressão “licenciamento” possa ter por objeto tanto o uso quanto a propriedade, o restante do contrato não permitia concluir ter havido a transferência da propriedade do software, incluindo seus códigos-fontes.

A decisão é emblemática, pois utilizou como fundamento os usos e costumes do mercado de informática, valendo-se do disposto no art. 113, do Código Civil, para interpretar o contrato. Nesse sentido, recorreu à doutrina de Newton de Lucca, para quem “o mais característico dos contratos sobre programas de computador, é, sem dúvida, o de licença para seu uso”.

Os magistrados ainda levaram em consideração a intenção das partes, lançando mão do disposto no art. 4º, da Lei 9.610/04, que dispõe que os negócios jurídicos sobre direitos autorais, incluindo softwares, devem ser interpretados restritivamente. Assim, se não houve no contrato previsão específica para a cessão dos códigos, certamente as partes não intencionaram transferi-los.

É bastante positivo, em face das decisões mencionadas, que, passados alguns anos desde que o comércio de softwares intensificou no país, a justiça demonstre ter amadurecido a sua compreensão da matéria, evitando decisões que franqueiem aos usuários códigos e senhas que permitem muito mais do que o mero uso do programa.

Infelizmente, no entanto, a distinção entre a licença de uso e a transferência da propriedade, que seria facilmente constatável, não raro foge à compreensão dos usuários, ensejando ações judiciais em que se pleiteiam senhas e códigos-fontes. E sempre sob a alegação de que não haveria intenção de se alterar ou copiar o programa, mas apenas de realizar a sua manutenção.

O equívoco, infelizmente, nem sempre é restrito aos pequenos usuários, havendo casos, ainda hoje, de grandes empresas que demandam informações que lhes dariam acesso total àquilo pelo qual não pagaram. Cabe, assim, aos operadores de direito manter-se atentos às sutilezas da matéria.

. Por: João Claudio Monteiro Marcondes, Graduado em Administração de Empresas pela Fundação Getulio Vargas e em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. É associado de Rocha e Barcellos Advogados.

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