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25/09/2013 - 08:59

Mensalão: modernismo e pós-modernismo jurídico

Em tempos não longínquos o direito e a justiça não frequentavam a consciência política dos brasileiros. Conhecedores da seriedade dos problemas jurídicos e da crise judiciária, que sempre caracterizou a administração da justiça brasileira, os juristas ou os artífices do direito ficavam desencatados nas campanhas políticas cujos discursos e debates obliteravam por inteiro o assunto.

A economia ganhava a dianteira num país que imaginava a tecnocracia sua redentora. Legalidade ou ilegalidade dos atos públicos só incomodavam quando eventualmente um projeto macroeconômico trombava em algumas decisões isoladas de nossos Tribunais Superiores.

O amadurecimento da Constituição de 1988, a ampliação das atribuições do Ministério Público e das intervenções do Judiciário no campo dos assuntos mais importantes para o país começaram a transformar essa paisagem política de desimportância do normativo. O Ministério Público, antes resumido à função de órgão defensor da sociedade em matéria criminal, ou de corpo de agentes públicos acusadores dos que se desviavam da lei, ganhou legitimidade de agir como defensor de inúmeros interesses e direitos sociais inexistentes em grande parte dos Estados avançado s; a defesa da criança e do adolescente e do meio ambiente são apenas exemplos magnos do conjunto de atribuições tutelares da sociedade criado pela atual Constituição. Os pronunciamentos do Judiciário, em especial do Supremo Tribunal Federal, sobre controvérsias relevantíssimas ao povo brasileiro, como as de reservas indígenas, pesquisas científicas, uso de células troncos e de embriões, por exemplo, deslocaram tais polêmicas dos campos do Executivo e do Legislativo para o Judiciário.

Houve resistência de juízes contra esse caráter de "legislador positivo" que começara a lhes ser conferido. Para esses, integrantes da ala conservadora da magistratura, sua função se restringia ao papel de "legislador negativo", é dizer, restritos ao papel de pronunciar que determinada lei ou ato administrativo não poderiam vingar, por contrastar com a lei magna ou outros regramentos de hierarquia inferior.

Ocorre que a filosofia do direito conservadora, do juiz que não pode ultrapassar os limites da "bouche da la loi" (a boca da lei), intérpretes e aplicadores passivos, passou a fenecer. Sem desbordar para o campo aventureiro do "direito alternativo", uma grande parte dos pensadores universais do direito despertou ao ver na atividade jurisdicional algo bem mais importante: aos juízes e ministros cabe descobrir os sentidos mais recônditos da lei e do sistema normativo como um todo, o que, em muitos casos, vindo à lume as profundezas da Constituição, desconstituem importantes atos do Executivo e do Legislativo; ou edificam o necessário sobre o nada jurídico resultante das omissões daqueles.

O episódio do mensalão não envolveu essa instigante movimentação do pós-modernismo jurídico, porquanto se tratou, simplesmente, de uma ação penal, que jamais deveria ter tido início e fim na Suprema Corte. Porém, assim, um dia, quiseram os réus; afinal, o STF era sinônimo de impunidade. Nunca condenara criminalmente um parlamentar. E seus Ministros são nomeados pelo Presidente da República. Logo, quem nomeia manda. Perceberam que se equivocaram redondamente, por ocasião do primeiro julgamento. Os nomeados, salvo lamentáveis exceções, não se revelaram súcubos do dono do poder nomeante. E a maioria condenou forte e generalizadamente, inclusive aqueles que responderam ante a Corte Suprema por arrastamento. Ora, é comezinho que a Corte Suprema é instância única (do contrário não seria Suprema), razão pela qual é rasteiro, depois da condenação, buscar, em desespero, o princípio do duplo grau de jurisdição, inclusive em produções normativas internacionais, que garantiram o princípio, por óbvio, nos processos comuns, iniciados "em baixo", ante o juiz natural dos cidadãos.

Neste passo, entra em jogo a questão tão agitada de um recurso que os militantes do direito conhecem desde as ornações manoelinas, filipinas e afonsivas, revestido desse nome compatível com tão antiga tradição: embargos infringentes. E, quanto a seu cabimento discutível, a liberdade dividiu o Tribunal. Dir-se-ia que a liberdade é somente individual. Portanto, se a decisão deveria ter em mira esse valor, não haveria dúvida: o recurso deveria ser admitido, não obstante um extremo rigor formalista que inspira os Tribunais no conhecimento dos recursos.

Ocorre que embatem em perfeita relação dialética, no direito de hoje, as liberdades individuais e as liberdades públicas e coletivas. Estas ficam profundamente arranhadas quando os recursos econômicos de toda a nação resultam malbaratados por atos de corrupção. Fiquemos num único exemplo: o desvio de alguns poucos reais da saúde, que tenha culminado na falta de assistência médica e tenha tirado a vida de um ser humano, não abalou profundamente sua liberdade - de todas a mais importante - de viver? Talvez as liberdades coletivas sejam menos perceptíveis, dado seu caráter abstrato e sua repercussão sobre um enorme contingente de vítimas anônimas.

Lamentavelmente o Ministro decano, Celso de Mello, com certeza dominador desses e de conhecimentos muito mais profundos, não pôs em textilha ambas as liberdades - privada e pública - na fundamentação de seu voto. Permaneceu no iluminismo modernista exclusivo das liberdades individuais (que ele e outro denominam de direitos de primeira geração) e que haurem sua legitimidade histórica nas revoluções inglesas e francesas, num momento em que as liberdades individuais tinham de ser enfatizadas contra os soberanos todo poderosos. Ocorre que vivemos em outro momento, ingressamos no ainda grégio pós-modernismo, mas que já dá sinais inequívocos, de cujo oceano o Ministro optou por passar bem ao largo.

.Por: Amadeu Garrido, advogado.

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