Página Inicial
PORTAL MÍDIA KIT BOLETIM TV FATOR BRASIL PageRank
Busca: OK
CANAIS

16/10/2013 - 09:05

Liberdade de expressão e biografias

O povo romano, dotado de uma "intelligentsia" jurídica profunda, reconhecia que determinados conflitos da vida social reclamam soluções que impõem severas reflexões; a esses temas deram o nome de "vexata quaestio". A perfeita superação criativa de certas instituições jurídicas que se arrostam, de modo aparente ou real, consubstancia uma das mais desafiadoras imposições ao espírito dos juristas.

Especialistas encarregados de interpretar e aplicar a lei, excelentemente formados, portadores de acervos culturais plasmados nas academias de todo o mundo, não raro entram em dissidência nos órgãos colegiados e sobretudo nas Cortes Supremas, às quais as Constituições, regra geral, atribuem competência para resolver esses impasses que provocam os cérebros mais privilegiados no âmbito da ciência do direito.

No momento em que o Supremo Tribunal Federal do Brasil se debruçou sobre a velha lei de imprensa, para saber se era um diploma normativo agressivo a princípios da Constituição Federal de 1988, a Corte não discutiu a fundo o problema. Preferiu resolvê-lo. O relator, então Ministro Ayres Britto, firmou a tese de que o direito à livre expressão do pensamento era um direito absoluto. Nas habituais discussões preliminares, em que as ideias dos julgadores são confrontadas, antes da literalidade dos votos, foi possível perceber discordâncias, como as emanadas do ministro Gilmar Mendes, forte em sua formação romano-germânica. No entanto, preferiu-se deixar o nó górdio embaraçado, visto que se tratava unicamente de declarar se a lei de imprensa fora ou não recepcio nada pela Carta do Estado de Direito Democrático. Evidentemente que não. Mais não seria preciso dizer; especialmente enfrentar a tormenta da existência ou inexistência de direitos absolutos nos ordenamentos positivos.

Do mesmo modo, pouco se falou do direito de resposta. Aliás, admiti-lo, frente a um suposto direito absoluto, poderia ser visto como uma insuperável petição de princípios.

Destarte, a "vexata quaestio" permaneceu latente. E, agora, surge a envolver as mais importantes figuras de nossa arte, de nossa literatura e de nossa cultura, diante do conflito entre a possibilidade de serem livremente biografadas ou terem a possibilidade de intervir no relato histórico sobre suas pessoas.

Ante a proporção do imbroglio, a ministra da Cultura fala em ouvir o povo, por meio de audiências públicas. Não é esse o melhor meio de solução de problemas jurídicos de tal envergadura, porquanto sua equação dependente de conhecimentos especializados e acumulados ao longo da história da normatividade humana. Os litígios jurídicos não têm sua solução condicionada à vontade de maioria, no já mencionado estado democrático de direito; seus princípios podem ser melhor manejados pela minoria, eventualmente vencida.

Portanto, o problema tem natureza jurídica e os juristas não podem fugir de seu enfrentamento. Sob esse aspecto, seria conveniente a vinda à tona de uma lei ordinária, que admitisse a biografia irrestrita ou sujeitasse sua liberdade a restrições do biografado, lei seguida de ação abstrata, a ser julgada por nossa Suprema Corte, definindo de vez, ou por largo período, a correta interpretação dos princípios em jogo.

São eles, primeiramente, em ordem literal exposta no texto constitucional, o direito à dignidade da pessoa humana, consagrado no art. 1º, inciso III, da Carta Política. Em seguida, vem a coluna vertebral da problemática, o direito à liberdade de expressão, consagrado no art. 5º, inciso IV e IX, do mesmo diploma fundamental, com a ressalva de garantia reparatória contra os excessos. Por fim, temos de atentar para o direito fundamental à intimidade, à vida privada, à honra e a imagem das pessoas (inciso X). É óbvio que esses valores pessoais são antepostos a declarações de terceiros que os possam estremecer.

Não há a menor dúvida sob a vigência do direito de resposta , o direito indenizatório pelo dano moral causado pelo agravo e a coerção penal . O que se põe em causa é a irreparabilidade do dano causado à pessoa detrimentada nesses valores. Tanto o direito de resposta, como o direito indenizatório, são incapazes de fazer as coisas voltar no tempo e expungir da memória coletiva uma menção ofensiva à intimidade do biografado (que o faz sofrer), à sua vida privada (que o incomoda no seio dos próximos), à sua imagem (que o torna um frankstein no palco da sociedade) e à sua honra (que o posicionava virtuosamente nesse palco, segundo os valores costumeiramente firmados).

Ora, as lesões jurídicas irreparáveis, tanto quanto possíveis, devem ser evitadas por meio de medidas preventivas. Nessa circunstância, não vemos como censura a submissão da biografia à analise do biogrado ou de seus familiares, dotados de legitimidade, quando falecidos. Isso não significa que, a seu talante, estas pessoas possam censurar a obra, suprimi-la, descaracterizá-la e tampouco transformá-la num panegírico, não correspondente à vontade do escritor. Porém, se, em alguma passagem, for invadida a órbita daqueles valores constitucionalmente tutelados, os interessados poderão exigir que tais pontos sejam suprimidos; e, na discordância do autor, o dissídio deverá ser submetido a um pronunciamento judicial. Somente o judiciár io pode dizer até que ponto se estende um direito.

A liberdade, enfocada como direito absoluto, autorizaria a temeridade de um insano gritar "fogo" num cinema lotado. Ninguém pode afirmar, em sã consciência, que essa conduta seja um direito subjetivo do desatinado. Do mesmo modo, depois de três julgamentos estremecidos, durante os quais se deu até mesmo o afastamento de juízes por "doença prolongada" (único meio de se afastar um juiz de sua judicatura na Alemanha), finalmente a Suprema Corte germânica estabeleceu o princípio de que a liberdade pode sofrer restrições - no caso, a livre expressão do pensamento não podia fazer hegemonia do holocausto, como se pretendia. Acima dessa suposta liberdade, estavam todas as vidas sacrificadas nos campos de concentração na segunda guerra mundial.

Em conclusão, consideramos relevante que nosso Congresso Nacional emita regra sobre a matéria, por meio de lei que seja em seguida submetida à palavra final do Supremo Tribunal Federal - não há outro caminho para compatibilizar-se os valores fundamentais previstos em nossa lei maior e que, em determinados momentos, podem colidir e arranhar-se.

. Por: Doutor Amadeu Garrido, advogado.

Enviar Imprimir


© Copyright 2006 - 2024 Fator Brasil. Todos os direitos reservados.
Desenvolvido por Tribeira