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20/11/2013 - 08:22

A lição de uma tragédia

A tragédia do mensalão - não há dúvida de que entre gregos e romanos o espisódio ganharia os palcos - iniciou o processo de execução da pena sob duas flagrantes irracionalidades: uma dos condenados, outra do Estado encarregado da punição.

Para entendê-las são necessárias algumas considerações filosóficas sobre o direito penal. O professor Paulo Ricoeur, professor, ex-prisioneiro de guerra, que conferiu seu brilho a Estraburgo e à Sorbonne, em sua monografia " O Justo ", pode nos conferir, a propósito desse fato magno que abalou a nação brasileira, luzes importantes à sua compreensão, hauridas num colóquio organizado em 30 de abril de 1994 pelo Jornal "La Croix", l'Énvenement, Paris, Édition du Centurion, pp. 93-107.

Versou o filosófo, de início, o tema "Justiça e Vingança", latente nos embates de nosso país nos últimos dias. São termos antinômicos. A justiça não busca a vingança. E, para que não se torne vingança, age por meio do processo. Mais precisamente, do devido processo legal, sob um Estado de Direito Democrático. A condenação é uma necessidade de satisfação da vítima, mas também um meio de recuperação da capacidade cívica e jurídica perdidas pelo condenado, de modo que reconquiste a estima pública e a auto-estima. O processo penal tem por objeto extremar a justiça da vingança.A primeira, se derrapar no sentido da segunda, tem sua essência deformada. Tal ocorreu e m momentos arcaicos da história, plenamente superados. Em suma, o processo impõe uma justa distância entre o delito que desencadeia a cólera privada e pública e a pu nição.

A vingança promove um curto-circuito entre dois segmentos, o da vítima e o infligido pelo julgador. O processo se interpõe entre ambos, para garantir aquela justa distância. Em consequência, o processo penal age com fundamento, em síntese, em quatro elementos: 1. a intervenção de um terceiro qualificado, o Estado, distinto da sociedade civil, o que parece não ter sido compreendido pelos críticos dos Partidos e dos segmentos simpatizantes dos condenados e reclusos. Tal distinção é percebida, entre outros caracteres, pelo modo de recrutamento dos membros do judiciário e pela figura humana do juiz, tão humano como nós, mas elevado acima de nós para deslinde de conflitos, ao cabo de provas qualificadas, indispensáveis à aceitabilidade da sentença, instrumento de imposição da violência legítima; 2. a vinculação desse terceiro a um sistema jurídico composto por leis escritas e vinculantes, produto de uma conquista cultural considerável. Cabe à lei definir os delitos e a proporção entre o crime e o castigo. Essas vinculações contribuem para o distanciamento de eventual vingança ou violência do juiz. A proporcionalização da pena situa o ato incriminado no mapa e na escala dos delitos. 3. Uma célula de debates - formada por juiz, promotor e defensor - tende a conduzir a incerteza à certeza sobre fatos e sentido das normas. Esses debates são travados com igualdade de armas, argumento contra argumento;4. finalmente, a sentença, elemento estrutal do processo, que, em caso de condenação, torna um presumido inocente em culpado, com a certificaç&a tilde;o do trânsito em julgado. Ao fazê-lo, afasta as partes da vingança e dá lugar à justiça. Reconhece, como autores, precisamente os participantes da ação criminosa. É a réplica mais significativa dada pela justiça à violência. Claro que é semp re possível o erro judiciário, excepcionalmente. Trata-se da punição ao fim de uma cerimônia de linguagem e a violência foi pulverizada pela palavra. O "castigo" foi posto à justa distância do "crime".

A condenação já não é devida ao homem, mas à lei. Kant e Hegel convergem sobre isso. A condenação restabelece o direito. E, nas democracias, avulta o legítimo, porque a lei expressa "o corpo de convenções morais que garantem o consenso mínimo do corpo político, consenso resumido na ideia de ordem". Se a ordem social é perturbada, a paz pública é ameaçada. Hegel dá a esse processo a forma dialética da negação de uma negação: à desordem que nega a ordem responde a negação da desordem que restabelece a ordem. No fundo, a condenação criminal resulta de um trabalho de luto, com o qual a alma ferida se reconcilia consigo mesma, interiorizando a figura do objeto amad o que foi perdido. Segundo Aristóteles, é uma catarse, propiciada pelo espetáculo trágico.Para ser entendida por quem a sofre. É a ideia-limite do acusa do como culpado. Hegel foi ao extremo de admitir a pena de morte como modo de "tornar o culpado ser racional". Em nosso modo de ver, a pena de morte, não aceitável por outros motivos, em tal hipótese seria inócua.

No ponto podemos sustentar que a conduta dos condenados - José Genoíno e José Dirceu - em posição de arrostamento e combate, foi irracional. Em plena democracia e conduzido pela Suprema Corte, o processo em questão observou todas aquelas condições de afastamento da justiça da vingança - sem contar que foi conduzido pela Corte Suprema de nosso país. A irracionalidade deriva do fato de que, se a pena não é aceita pelo condenado, ela não cumpre sua função pedagógica. Se a condenação não é reconhecida, o condenado não é atingido como ser racional. O processo malogra em seus fins. E o condenado lança fora a capacidade,o potencial de voltar a ser um ser integral depois do cumprimento da pena, conforme dispõe o novo Código Penal franc&ecir c;s (113/16): "A reabilitação de pleno direito "apaga todas as incapacidades e perdas." O problema é q ue o Brasil não é a França e nosso sistema carcerário é sórdido, não garante saúde, trabalho, ensino, lazer adequado e outras condições necessárias à recuperação. Daí o protesto dos gladiadores, que, por terem estado à frente do governo por mais de uma década, são, ao lado de governos anteriores, os responsáveis pelo sistema prisional onde os condenados chafurdam num pântano repugnante. O vento que costuma bater nos Chicos terminou por bater em alguns Franciscos.

O erro do Estado-Juiz já foi exposto pelos melhores juristas, inclusive pelo Ministro Marco Aurélio de Mello, que atribuiu a prisão ininterrupta dos condenados a regime semi-aberto, nos primeiros dias da execução da pena, a uma prisão preventiva não decretada. Acrescentado o erro aos demais aspectos de nossas prisões, as penas, no Brasil, induzem o processo inverso de dessocialização acelerada de uma fera, não de uma pessoa livre, é progressivamente engendrada pela violência, em detrimento de qualquer projeto de reinserção.

Se a turbulência irracional servir para um contorno de rotas, por meios indiretos, ainda teremos evoluído.

. Por: Dr. Amadeu Roberto Garrido de Paula, advogado.

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