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11/03/2014 - 08:55

O Brasil e sua tragédia jurídica

Ao iniciar meus estudos jurídicos em 1970, na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco (USP), a reverência ao objeto de nossos estudos e ao Poder Judiciário, instituição constitucionalmente destinada a fazer da lei abstrata aquilo que´é nosso, casa, salário, uma promoção, respeito do vizinho, posse, propriedade, prestação administrativa, justa reprimenda, sem excessos, em deslizes criminais, e outras tutelas então previstas no ordenamento jurídico, era absoluta.

Por outro lado, o rigor dos estudos jurídicos não comportava flexibilizações. Muitos dos contemporâneos lembram-se das noites em vigília debruçados sobre as instituições romanísticas; não só era labiríntico dominar os conceitos criados pela genialidade do povo de Roma, como a dificuldade de penetrar pelos meandros da língua latina levavam não poucos ao desespero. Os professores não exitavam em dar notas implacáveis. Ao fim e ao cabo, ainda que após engasgos curriculares, todos saiam sãos e salvos e iriam brilhar na advocacia, na magistratura, no ministério público, na política e nos inúmeros campos de atividades que o domínio do direito oferece a seus cultores.

O Brasil era uma aldeia, forçoso é reconhecer. A ética nunca foi o forte desse povo, idem. No entanto, o que se desviava do erário eram tostões, à vista do que hoje se constata. O suficiente para se ter vassouras, falar-se em bandalheiras etc. Diz uma lenda urbana que o autor dessas expressões, um nosso colega desbussolado e que, segundo observações históricas idôneas, tomava do veneno que inoculava, corrigiu um economista que lascou do palanque: o que mata esse é governo é o "déficit primário". Diga simplesmente, disse nosso homem: a "bandalheira", a "senvergonhice".

A Constituição de 1988, chamada de cidadã, abriu portas imensas à realidade jurídica brasileira: o Ministério Público, antes restrito às acusações criminais e outras poucas funções de cuidador da lei, passou a tratar da criança e do adolescente, do ambiente, de grupos desvalidos e portadores de interesses jurídicos e, talvez principalmente, do dinheirinho do povo. Uma esperança, até porque poucos são os países em que as instituições ministeriais têm tão amplas investiduras.

Antes, porém, o direito começara a deteriorar-se, a partir da proliferação de faculdades de direito por todos os sítios desse país. Foram de direito as "Faculdades" de fim de semana, aquelas casas improvisadas em que executivos das capitais davam um giro recreativo para ouvir algumas palestras do Juiz da Comarca, do Promotor, do Delegado e de seus mais ilustres advogados, sem descurar o lúdico, porque, afinal, ninguém é de ferro: no final vinha o canudo. O desastre teve início durante a gestão do Ministro Jarbas Passarinho no Ministério da Educação e Cultura, por onde trafegaram os interesses das escolas particulares veiculadas por um Deputado de nome Toledo, da região de Bauru.

Nesse momento a Ordem dos Advogados do Brasil, inclusive com o apoio dos estudantes das faculdades sérias, instituiu o Exame de Ordem, que até hoje perdura. Caso contrário, seria o caos, tal o despreparo revelado pelos egressos de miríade de cursos superiores que do "status" só levam o nome.

A ciência jurídica foi desmoralizada, tornou-se superficialidades descompromissadas com qualquer investigação, análise e reflexões sérias. Os formados eram - e são - completamente despreparados para o elevado encargo de operar o direito. Não gostamos quando juristas italianos, ante o lamentável incidente no qual negamos a extradição de Césare Batisti, dispararam que o Brasil tinha mais mulheres reboladoras que juristas. Mas foi difícil contestar com argumentos fundamentados.

Paradoxalmente, uma sociedade mais complexa e desenvolvida gerou novas leis e códigos importantes. Podemos citar o Estatuto da Criança e do Adolescente, que serve de modelo normativo para inúmeros países desenvolvidos, mas fenece num país que não se aparelhou para cumpri-lo e deixou a violência tomar conta de todos nossos quadrantes, hoje não só urbanos; o Código do Consumidor, em que os parcos recursos dos compradores são amplamente defendidos - teoricamente. As agências reguladoras dos monopólios que nos cercam são lenientes e a caminhada do povo à Justiça é cheia de agruras e entope um mecanismo estatal enfartado. A Lei de Responsabilidade Fiscal foi de extrema importância, mas uma tal de "contabilidade criativa" já trata de remetê-la ao costumeiro pantanal. A lei fomentadora da ação civil pública, da ação popular, são outros excelentes diplomativas jurídicos - transformados em símbolos de um judiciário inoperante.

Por fim, o episódio do mensalão. Nunca nossa Suprema Corte - e é impossível pensar em uma sociedade organizada sem uma respeitável e respeitada Corte Suprema - deixou de cuidar da guarda de nossa Constituição para entregar-se a processos criminais contra quem surrupiou o dinheiro público. Os nobres Parlamentares, sob a hipótese de virtual impunidade, sempre mantiveram o "foro por prerrogativa de função", um foro de privilégio, mais um direito que têm acima de nossos irmãos mortais comuns. Já tratam de mudar a regra, porquanto, apesar do alívio final, passaram a temer a sorte reservada a Dirceu, Genoíno et caterva. A consideração continua esperta: iniciado o processo criminal em primeira instância, suas protelações levam à prescrição.

O problema é que jamais na história deste país o STF esteve lançado à sarjeta qual um bêbedo infeliz. A responsabilidade deriva do compromisso de alguns ministros com quem os nomeou, pouco importando os direitos populares e, de outro lado, com a incontinência e a tendência opressiva de outros. Não raro seus protagonistas se esqueceram que se encontravam no interior de um templo. E, fundamentalmente, da Sra. Presidente da República, que não "tergiversou" em seguir a determinação do padrinho e nomear, para substituir dois ministros que sofreram os efeitos da aposentadoria compulsória, dois veiculadores de teses palatáveis ao poder central - um deles manifestamente impedido, porquanto, antes mesmo de sua nomeação, emitira pronunciamento doutrinário contrário à condenação já concretizada pela maioria. Em suma - são tantas as considerações que seriam pertinentes - recompor o direito brasileiro é algo mais complexo que refazer um centro científico destruído por um incêndio.

. Por: Amadeu Garrido de Paula, advogado especialista em Direito Constitucional, Civil, Tributário e Coletivo do Trabalho e fundador da Garrido de Paula Advocacia.

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