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25/04/2014 - 07:59

O Eu-hermenêutico

Uma redundância lógico-existencial se infiltra irremediavelmente no título deste artigo. Nada de novo havia no enunciado racional de Descartes, pois o homem sempre pensou acerca do sentido das coisas que se lhe apresentavam. O pensamento faz o homem, pois lhe confere existências diante do simbólico. As subjetividades surgem a partir da busca de sentido para aquilo que nos afeta.

Se desejar, então, pense em Cassirer, que se ocupou do homo symbolicus e suas instintivas atividades cognitivas voltadas para a compreensão. Ou em Jung, que tentou uma arqueologia dos caóticos símbolos organizadores do humano. Ou, antes, nos milenares esforços hebreus voltados para a compreensão e explicação do mundo da vida, e na dramática criatividade mitológica dos gregos. Chegaremos, então, aos inquietos fundadores Schleiermacher, Dilthey, Husserl, Heidegger e Gadamer. E também em Fernando Pessoa, Adélia Prado, Bispo do Rosário, Torquato Neto, Pixinguinha e tantos outros.

Há uma relação de dependência entre a existência e a constituição do homem e as coisas constituintes de seu entorno, as quais busca compreender. O homem, ao nascer, é inserido compulsoriamente no “círculo hermenêutico” que define seu modo de ser no caminho para a compreensão.

Não há opção quanto a esta inserção. O esforço de compreensão que o define insere o homem naquele círculo. A opção estaria, depois, no esforço natural caótico exigido pelo ato de interpretar, quando o eu-hermenêutico pode (deve!) afastar seus pré-juízos sobre o objeto a ser compreendido e seu contexto, a fim de exercitar o mais livremente possível suas faculdades cognitivas. O método é a resultante do processo, não a sua causa.

A interpretação é um ato intrinsecamente egoístico, praticado em nome da própria satisfação e liberdade. A individualidade é construída, prazeirosamente, pelas opções construtoras de sentido. Daí a dificuldade de dotarmos uma posição pirrônica diante do pré-conhecido: a tendência é adotarmos o pré-juízo que mais nos satisfaz.

Orientados pelo princípio do prazer, interrompemos o círculo hermenêutico. Frustramos a trajetória rumo à liberdade propiciada pela epoché, pela suspensão dos efeitos das pré-compreensões no processo de tentativa de interpretação que conduz à compreensão. E com isso entorpecemos o Eu-hermenêutico e seus sentidos, deixando de perseguir a essência das coisas prometida pelo ideal de compreensão.

Nossa era radicalizou a autonomia do Eu-hermenêutico e nos entregou ao perspectivismo de Nietszche (“Não existem fatos, apenas interpretações”). A partir daí, a malemolência instilada pelo hedonismo irreflexivo abriu as portas da percepção para o radical relativismo moral, com reflexos acentuados nas escolhas comportamentais.

Embriagado com a analgesia dos sentidos (endo-morfina) causada pela opção interpretativa que o conforta, o Eu-hermenêutico se perde no cipoal ético do relativismo e nos deixa desbussolados em meio à profusão de sentidos.

E outro círculo surge, vicioso: orientados pela lei do menor esforço, razão derivada do princípio do prazer, negamo-nos ao exercício hermenêutico – que nos exige aquela epoché, suspensão quase pirrônica do julgamento, uma efetiva contemplação desinteressada, com o que se abre espaço para o surgimento de uma nova compreensão – e adotamos a resultante hermenêutica realizada por outros, mídia inclusive, que nos é apresentada como a solução definitiva.

O que efetivamente nos retirou do paraíso foi a capacidade de escolher. Se esta nos assegurou a autonomia e liberdade diante dos determinismos, também nos lançou na angústia que precede a escolha e nos dilemas da interpretação que orientam o exercício responsável da vontade. Penso, logo me angustio. As subjetividades se afogam nas hipóteses. E se entregam ao langor do comodismo, das fórmulas e subsunção do mundo da vida a modelos mal experimentados.

Por caminhos perversos, o Eu-hermenêutico está sufocando o Eu, em vez de libertá-lo.

O autor: Caleb Salomão vive em Vitória, no Espírito Santo. É Advogado e professor de Direito Constitucional da Faculdade de Direito de Vitória (FDV). Publicou no Brasil a obra Artigos para Amar, e escreveu outros livros também na área do direito, como o recente Constituição 1988 – 25 anos de valores e transições. Ainda este ano, irá lançar também os livros Em Busca da Legitimidade e (Des) Casando – Reflexões sobre as emoções e o direito nas separações. [www.calebsalomao.com.br].

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