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05/06/2014 - 09:59

Princípio da Insignificância: Narcisismo e Personalismo


Não temos no Brasil regras legislativas gerais a respeito do princípio da insignificância (que sugere a não aplicação do direito penal com suas drásticas penas nos casos de ninharia ou de pequeníssima relevância - subtração de um palito de fósforo, por exemplo). Diante da ausência de regras fixadas pelo legislador, cada juiz atua da sua maneira (cada um com seus critérios). No crime de descaminho (sonegação de impostos em importações de produtos), por exemplo, o STF admite a incidência do referido princípio quando o valor dos impostos não excede a R$ 20 mil. No STJ o limite aceito é de R$ 10 mil (até esse limite não se admite a execução fiscal; o que não é importante nem sequer para a execução fiscal, não pode ter relevância penal - veja Valor 3/6/14, p. E1).

O STJ segue (em relação à insignificância no crime de descaminho) a Lei10.522/2002; o STF está alinhado com a portaria 75 do Ministério da Fazenda. Como os valores são divergentes (R$ 10 mil e R$ 20 mil, respectivamente), os entendimentos jurisprudenciais também o são. Reina a insegurança jurídica. Argumento do STJ: uma portaria não pode valer mais que a lei. Nada mais equivocado. Incompreensão completa do princípio da legalidade. Para beneficiar o réu, em direito penal, até mesmo os costumes (que não são escritos) valem. No Amazonas um índio de 18 anos foi acusado de ter mantido relação sexual com uma índia (da sua tribo) de 13 anos. Imputou-se um estupro. Provou-se que o costume da tribo era selecionar um índio para copular com a índia logo após sua primeira menstruação. Eram os costumes. Isso foi suficiente para arquivar o assunto (não houve nenhum crime). Os costumes não são escritos e valem para favorecer o réu. Por que não uma portaria, que é escrita?

Um rapaz de 25 anos foi acusado de ter subtraído um galo e uma galinha do vizinho. A 1ª Turma do STF (em maio de 2014) arquivou o caso (trancou o processo). Votação não unânime: ficou vencido o ministro Marco Aurélio (que, estranhamente, não viu insignificância no caso). Antes de o STJ admitir o limite de R$ 10 mil (no descaminho) o valor que se seguia era de R$ 100 (posicionamento do ministro Felix Fischer, que se alastrou como grama daninha). Em incontáveis casos de insignificância manifesta (subtração de duas tábuas, no valor de R$ 20, falsificação de duas notas de R$ 50 etc.) o STF vem negando a incidência do princípio. O que sugerem todas essas divergências jurisprudenciais?

As incontáveis divergências jurisprudenciais sugerem (a) a ausência de leis claras suficientemente delimitadoras das situações fáticas abarcadas por ela, (b) a ausência de mecanismos jurisprudenciais eficientes que poderiam eliminar os antagonismos e (c) o individualismo e o narcisismo do humano contemporâneo, inserido num contexto cultural de "generalizada desorientação: ideologias, filosofias, religiões [textos legais], todos os sistemas de referência se tornaram vagos, insuficientes, descartáveis e opcionais, deixando os indivíduos entregues ao culto mais ou menos narcísico de si próprios, fragilizados face a um mundo que parece ter apenas um traço claro e constante: o da sua permanente mudança; é a vitória do narcisismo, como assinala Lipovetsky (A era do vazio), regido pela lógica da personalização (individualismo); vivemos a era da paradoxalidade, porque os indivíduos se tornaram simultaneamente mais informados e mais desestruturados, mais adultos e mais instáveis, mais independentes das ideologias e mais tributários de modas, mais abertos e mais influenciáveis, mais céticos e mais profundos"; o narcisismo se converteu na modalidade nuclear da personalidade contemporânea; é a dinâmica individualista que manda; cada um pensa em si próprio e cria seus padrões de valores" (veja Manuel Maria Carrilho, prefácio ao livro A era do vazio). Diante do humano contemporâneo atomizado, individualizado, personalizado, nada infenso à lógica eminentemente paradoxal do nosso tempo, é de se esperar que se aprofundem abundantemente as divergências jurisprudenciais (assim como a insegurança jurídica), que devem sugerir um novo imperativo de civilizar a cultura-mundo (Lipovetsky), que possa ajudar a humanidade a tornar o mundo mais compreensível e mais habitável.

. Por: Luiz Flávio Gomes, jurista e diretor-presidente do Instituto Avante Brasil. Estou no professorLFG.com.br e no twitter: @professorlfg.

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