Página Inicial
PORTAL MÍDIA KIT BOLETIM TV FATOR BRASIL PageRank
Busca: OK
CANAIS

17/01/2008 - 10:26

A América Latina e nosso ideal de seriedade

O contraste entre o bom desempenho econômico e o cenário político carregado do presente pode levar muitos observadores a interpretar que a América Latina estaria revertendo às velhas práticas populistas.

Nas aparências, a América Latina vive tempos conturbados. Na Venezuela, Bolívia e Equador, três governos de recorte populista tentam “refundar” seus países com novas constituições, despertando, como era de se esperar oposição acirrada e tenaz de forças mais conservadoras. Em outros países da região, como Argentina e Brasil, presidentes de centro-esquerda trilham caminhos bem mais moderados, mas mesmo assim não deixam de despertar críticas de que estariam pendendo para posições estatistas, de que são complacentes com o aumento do gasto público ou de que não primam pelo respeito aos contratos.

Comparado à disciplina do Consenso de Washington que prevaleceu na década de 90, o momento atual da América Latina poderia parecer, à primeira vista, como um retrocesso aos tempos de irresponsabilidade na condução da política econômica, com todos os riscos que esta postura implica. Por outro lado, a economia da região passa por um dos seus melhores momentos em muitas décadas. Segundo os dados do Fundo Monetário Internacional (FMI), que incluem projeções para 2007, a região da América Latina e do Caribe (o chamado “hemisfério ocidental”) cresceu a uma média anual de 5,3% nos quatro anos de 2004 a 2007, comparado a 1,8% nos quatro anos anteriores. A inflação média de 2004 a 2007 na região foi de 5,9%, ante 8,3% para o quadriênio precedente. Na conta corrente, por sua vez, houve um superávit médio de 1,1% do PIB nos quatro anos até 2007, o que se compara com um déficit médio de 1,4% no período de 2000 a 2003.

O contraste entre o bom desempenho econômico e o cenário político carregado do presente pode levar muitos observadores a interpretar que, depois de ter feito o dever de casa na década de 90 e no início da atual, a América Latina estaria revertendo às velhas práticas populistas. Assim, estaríamos vivendo um período transitório de prosperidade, calcado nos efeitos das boas políticas econômicas do passado recente e da alta das commodities exportadas pela região. Por conseguinte, a paralisação do processo de reformas, somada às conseqüências de políticas populistas e ao eventual fim ou arrefecimento do ciclo das commodities, indicaria que nosso futuro é incerto, e que podemos retornar aos tempos de instabilidade econômica e baixo crescimento. Esta visão pessimista também pode ser vista do ponto de vista institucional.

Seria como se as reformas dos anos 90 tivessem acontecido na superfície do processo sociopolítico tocadas, sem a necessária formação de consenso, por uma fina camada tecnocrática que se aproveitou de momentos difíceis para ministrar remédios amargos. Desprovidas de legitimidade democrática mais profunda, aquelas mudanças não teriam gerado instituições sólidas e resistentes, que garantissem a permanência da racionalidade administrativa no longo prazo, independentemente do ciclo político. Sem esta âncora institucional, a região estaria condenada a repetir os mesmos erros do passado.

Não faltam exemplos para municiar os que acreditam nesta tese. Os governos da Venezuela e da Bolívia repactuaram unilateralmente contratos no setor de petróleo e gás, e a Argentina deu o maior calote de todos os tempos em seus credores, congelou tarifas e impôs condições danosas aos concessionários de serviços públicos. Mesmo no Brasil, foram tomadas atitudes discutíveis quanto à estabilidade do modelo de agências reguladoras autônomas e, agora, há chances de que o marco regulatório do setor de petróleo seja redesenhado em função das descobertas do campo Tupi — o que pode soar aos investidores estrangeiros como um sinal de que mudanças arbitrárias possam acontecer na esteira de ocorrências imprevisíveis.

Não há dúvida de que a questão institucional e do respeito aos contratos é importante para a América Latina. Como o Brasil, a maior parte dos países da região tem níveis baixos de investimento e de poupança doméstica, e precisa do investidor estrangeiro para atingir e manter níveis satisfatórios de crescimento econômico. Como se viu mais acima, a região vem registrando um pequeno superávit em conta corrente nos últimos anos, o que significa que vem exportando poupança. Esta situação, porém, parece excepcional. Ela se baseia tanto no alto preço das commodities como no fato de que, da mesma forma que ocorre no Brasil, outros países latino-americanos também passaram nos últimos anos por um processo de redução do endividamento externo.

É de se supor que, a perdurar a relativa estabilidade macroeconômica da região, a maior parte dos países volte a acessar o financiamento externo, com déficits moderados e sustentáveis em conta corrente. Para que este processo ocorra de forma virtuosa, porém, é necessário que os investidores internacionais encontrem boas oportunidades e um ambiente institucional com regras do jogo estáveis. E é evidente que a exacerbação do discurso nacionalista, que ocorre em alguns países da região, assim como a incerteza jurídica e a instabilidade institucional, concorrem para dificultar o ingresso de investimentos.

Há, entretanto, algumas inconsistências nesta visão de que “a América Latina não é um continente sério”— para parafrasear o suposto comentário de De Gaulle sobre o Brasil. É evidente que a região só tem a ganhar com o aprimoramento das suas instituições. Por outro lado, para sustentar que esta é uma questão em que somos comparativamente inferiores aos nossos competidores globais, é preciso dar mostras de que no resto do mundo não existem aquelas ocorrências de que tanto nos envergonhamos, como latino-americanos.

E quando este exercício é feito, chega-se à surpreendente conclusão de que, em linhas gerais, as instituições da América Latina são razoáveis, e de que existe um grau de segurança nas regras do jogo que não é inferior à encontrada na maior parte do mundo desenvolvido e emergente. O episódio recente do referendo sobre a Constituição venezuelana é um bom exemplo de como a América Latina acaba sendo julgada, especialmente pelos seus próprios habitantes, com um grau de severidade que não se estende às outras partes do globo. É indubitável que Chávez é um governante com tendências autoritárias, e que a “Constituição Bolivariana”, caso aprovada, enfeixaria poderes nas mãos presidenciais que dificilmente se coadunam com uma ordem democrática. Além de estabelecer a reeleição ilimitada do presidente, a Carta permitiria que este declarasse estado de exceção por tempo ilimitado e criasse a seu bel-prazer estados, municípios, territórios federais e “regiões estratégicas de defesa”. Outra aberração era a de que juízes da Suprema Corte poderiam ser nomeados e destituídos pela Assembléia Nacional, por maioria simples e a qualquer hora.

A proposição do presidente Chávez de uma Carta com este teor sugere, de fato, que a cena política na Venezuela já se deteriorou bastante, e que não vige no país a normalidade democrática em sua plenitude. É preciso não esquecer, porém, que a Constituição Bolivariana foi derrotada. Mais do que isto, foi suplantada por uma margem muito pequena de votos, o que é uma indicação de que o sistema eleitoral venezuelano é limpo. Não é crível que, num país com manipulação eleitoral, o mandatário perca por tão pouco — provavelmente o resultado seria “rearranjado” para lhe dar a vitória. Outro aspecto interessante é que a derrota no referendo não provocou nenhuma convulsão política. Pelo contrário, Chávez acatou o resultado e, mesmo que em rompantes retóricos posteriores tenha buscado desmerecer a vitória dos adversários, o resultado foi absorvido pelo país de forma ordeira e pacífica.

Outra fonte recente de críticas aos costumes políticos latino-americanos provém da eleição de Cristina Kirchner, esposa do presidente Néstor Kirchner, para sucedê-lo a partir de 10 de dezembro. No entanto, é preciso observar que Cristina tem em seu currículo os postos de senadora e de deputada, tendo sido, portanto, plausível sua candidatura à presidência da República. Ademais, é importante notar que o processo que precedeu a eleição da Srª. Kirchner deu-se dentro do marco legal que vigia no país.

Denúncias de fraudes — É interessante contrastar os exemplos latino-americanos mencionados acima com o ocorrido nas recentes eleições parlamentares na Rússia, em 2 de dezembro. O partido Rússia Unida, do presidente Vladimir Putin, conquistou uma vitória esmagadora, com 64% dos votos, ficando com 315 das 450 cadeiras da Duma, o parlamento russo. Diferentemente do ocorrido nas recentes eleições da América Latina, porém, o pleito russo foi eivado de denúncias de fraude. De acordo com a avaliação do governo alemão, a votação na Rússia não foi livre nem democrática. Indícios suspeitos ocorreram antes mesmo da eleição, quando a Organização para Segurança e Cooperação na Europa (OSCE) desistiu de enviar monitores ao país, por causa das dificuldades em obter vistos. O resultado das eleições teve, efetivamente, aspectos muito bizarros.

Na Chechênia, por exemplo, a Comissão Central de Eleições da Rússia reportou que 99% dos eleitores compareceram às urnas, e que 99,36% votaram no Partido da Rússia Unida, do presidente. É difícil crer que uma província na qual o movimento por autonomia foi brutalmente esmagado por Moscou possa ter manifestado um apoio tão maciço e unânime a Putin.

O bom momento econômico de que desfrutamos agora, portanto, não é apenas o resultado fugaz de commodities em alta, mas reflete também o nosso amadurecimento institucional.

Chama a atenção, portanto, a defasagem no desenvolvimento de sistemas eleitorais confiáveis nos países latinoamericanos e na Rússia, em claro detrimento desta última. Mas não é apenas nesta frente que a Rússia demonstra ser um ambiente político-econômico bem mais hostil e imprevisível do que o da nossa região. Comparadas com a brutal suspensão do fornecimento de gás russo à Ucrânia em 2006, em pleno inverno, para forçar uma alta de preço, as manobras do presidente Morales, da Bolívia, para forçar a Petrobras a renegociar contratos parecem até moderadas.

É interessante relembrar, finalmente, o episódio ocorrido no início do governo Lula. Em fevereiro de 2003, o presidente teria declarado que o poder político havia sido terceirizado, uma vez que a presidência da República seria informada do reajuste dos chamados preços administrados pelos jornais, fazendo clara alusão à independência das agências reguladoras. Foi uma espécie de “Deus-nos-acuda” entre os analistas de pendor mais liberal, e ciosos da necessidade de o país demonstrar seu apego aos contratos. Muitos viram ali sinais prematuros de que o governo Lula descambaria para um voluntarismo perigoso na sua relação com os investidores em infra-estrutura. É curioso notar, porém, que não existe o mesmo rigor quando se analisa a recente decisão do governo de George Bush de congelar por cinco anos as taxas de juros flutuantes de parte das hipotecas do segmento “subprime”, uma clara interferência governamental em contratos do mercado. No caso americano, a medida foi vista como uma iniciativa inteligente para mitigar as perdas da crise no segmento imobiliário.

No Brasil, como uma imperdoável quebra de contratos. Quando todos estes fatos são levados em consideração, a tese sobre o dramático subdesenvolvimento institucional da América Latina começa a parecer exagerada. A atual maré de esquerda na região, oportuno lembrar, é normal e previsível em vista da incapacidade dos governos, ao longo da história, de encaminhar soluções estruturais aos dramáticos problemas de desigualdade e de pobreza. Na verdade, uma análise imparcial revela que a América Latina vive, hoje, o mais brilhante período democrático de toda a sua história. Com a exceção de Cuba, todas as nações do subcontinente são atualmente democracias ou semidemocracias. Entre novembro de 2005 e dezembro de 2006, foram celebradas nada menos que 26 eleições presidenciais e legislativas em 16 países, evidência eloqüente de um vigor sem precedente das liberdades políticas na região.

Se ainda há um forte componente populista em importantes forças políticas da região, é importante notar que, historicamente, estas tendências decorrem do colapso de sistemas partidários desmoralizados por baixo crescimento econômico, crise social e corrupção política. Numa região com um longo histórico de vulnerabilidade externa, crises cambiais e inflação é preciso levar em conta as brutais flutuações na renda e nas condições de vida de indivíduos e de segmentos sociais, que ocorrem em curtos intervalos de tempo. Em um ambiente destes, é mais do que natural que surjam correntes com discurso radical, e que a disputa política seja estridente.

Nada do que foi mencionado acima desfaz, todavia, o prejuízo causado pelas trepidações institucionais e contratuais no investimento a médio e longo prazo e, por conseqüência, no crescimento econômico. É inegável também que, ao longo da história, este foi um dos grandes problemas da América Latina, e que até hoje não está plenamente resolvido. Existe uma pesada agenda pela frente de aperfeiçoamento institucional para os países da região. O que não se deve fazer, por outro lado, é cair numa visão de extremo pessimismo e negatividade, que em última instância é paralisante e não leva a lugar nenhum.

Amadurecimento institucional — Apesar das percepções internas e externas freqüentemente indicarem que a América Latina é quase um caso perdido em termos de desenvolvimento das instituições, uma rápida percorrida pelo mundo atual mostra que não somos piores do que nossos pares emergentes em diversas questões importantes, que muitas vezes somos superiores à média. E que em alguns pontos atingimos níveis equivalentes ao do mundo desenvolvido. O bom momento econômico de que desfrutamos agora, portanto, não é apenas o resultado fugaz de commodities em alta, mas reflete também o nosso amadurecimento institucional. É claro que os avanços não são irreversíveis, e que devemos prosseguir no aperfeiçoamento das nossas sociedades se o objetivo é prolongar a bonança para além da fase de excepcional cenário externo.

De toda forma, é importante ter em mente que os índios e mestiços que compõem a maior parte das nossas populações não são, definitivamente, nem um pouco mais suscetíveis a políticas de quebra de contrato e ao autoritarismo político do que os brancos, loiros e orientais que povoam outros países desenvolvidos e emergentes — e para os quais freqüentemente olhamos como modelos. Em resumo, não resta dúvida de que o período de redemocratização e de intensas reformas econômicas, iniciado nos anos 90, deixou raízes profundas na América Latina, que têm tudo para perdurar. O caminho é longo e o trabalho a realizar ainda é imenso, mas já nos encontramos no rumo certo — e talvez mais adiantados do que julgamos. | Por: "Conjuntura Econômica"/IBRE/FGV.

Enviar Imprimir


© Copyright 2006 - 2024 Fator Brasil. Todos os direitos reservados.
Desenvolvido por Tribeira