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23/12/2014 - 08:58

O “feminicídio” e o princípio da igualdade

O Senado Federal aprovou recentemente o projeto de lei que concedeu o aval para que o “feminicídio” fosse incluído no Código Penal. Apenas para bem pontuar a questão, “feminicídio” nada mais é do que o assassinato de uma pessoa do sexo feminino, pelo simples fato de ser mulher. É, segundo a doutrina, o assassinato motivado por uma questão de gênero, ou seja, mata-se apenas porque a vítima é mulher.

Segundo o Projeto de Lei do Senado (PLS) n. 292/2013, de autoria da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito da Violência contra a Mulher, que ainda depende de aprovação da Câmara dos Deputados, o “feminicídio” figurará como uma nova circunstância qualificadora do crime de homicídio. Sendo assim, tal qual se dá com as demais qualificadoras já existentes, o autor do “feminicídio” ficará sujeito ao cumprimento de pena de reclusão de 12 a 30 anos.

De acordo com a redação do referido Projeto de Lei, o crime de homicídio será considerado qualificado quando o delito for praticado “contra a mulher por razões de gênero” (artigo 121, §2º, VI). Mas, qual, ao cabo de contas, seria o conceito de “razões de gênero”?

Para o legislador, a tipificação do “feminicídio” só ocorrerá “quando o crime envolve: I- violência doméstica e familiar; II – menosprezo ou discriminação à condição de mulher”. Eis aí, portanto, a ideia do que seriam as tais “razões de gênero”.

Assim, para que fique bem claro, para que um homicídio cometido contra uma mulher seja considerado “feminicídio”, será preciso que o delito seja praticado ou no âmbito da “violência doméstica”, ou, então, em situação clara de “menosprezo ou discriminação à condição de mulher”.

Além disso, o PLS também prevê que a pena poderá ser aumentada de 1/3 até a metade “se o crime for praticado: I- durante a gestação ou nos 03 (três) meses posteriores ao parto; II – contra pessoa menor de 14 (quatorze) anos, maior de 60 (sessenta) anos ou com deficiência; III – na presença de descendente ou ascendente da vítima”. Por fim, vale mencionar que o “feminicídio”, assim como ocorre com as demais hipóteses de homicídio qualificado, integrará a lista dos chamados “crimes hediondos”.

Positivamente, o projeto pode ser compreendido como uma consequência lógica da Lei n. 11.340/2006 (Lei Maria da Penha), já que, em real verdade, prevê uma conduta típica que, de fato, passou despercebida em 2006.

Nesse ponto, é relevante mencionar que a Lei Maria da Penha trouxe importantes inovações à nossa legislação penal, sobretudo porque conferiu à mulher um arcabouço de medidas protetivas que, ao menos até então, não existiam no Direito Penal pátrio. Sem dúvida, a Lei 11.340/2006 tornou mais eficiente a proteção da mulher contra a violência doméstica.

Insta aqui mencionar que a Lei Maria da Penha, apesar da sua importância no cenário jurídico nacional, foi, e ainda é, alvo de diversas críticas. Com efeito, justamente por ser uma lei elaborada para beneficiar e proteger apenas a mulher, muitos a criticam por considerá-la inconstitucional.

Realmente, o homem que é vítima de “violência doméstica” não pode ser beneficiado pelas medidas protetivas e de urgência previstas na Lei Maria da Penha. Em razão disso, podem mesmo surgir algumas situações absurdas na prática. Por exemplo, se um pai agride uma filha, a Lei Maria da Penha poderá ser aplicada, para assim “expulsar” e afastar o agressor do convívio com a vítima, porém, se a vítima for um filho, as medidas protetivas insertas na Lei 11.340/2006 não poderão ser adotadas.

E, mesmo ciente das desigualdades criadas pela Lei Maria da Penha, o legislador, agora, seguindo a mesma linha daquela lei, que é a de conferir maior proteção apenas à mulher, surge com a ideia de incluir o “feminicídio” no Código Penal. Ao que parece, as críticas e o risco da inconstitucionalidade não impediram que o legislador incidisse nos mesmos equívocos já cometidos anteriormente.

Em que pese a preocupação da sociedade com a proteção específica da mulher contra toda e qualquer forma de violência, máxime porque, de fato, é ela a principal vítima de agressões e maus-tratos no âmbito familiar e doméstico, a inclusão do “feminicídio” no nosso Código Penal reclama uma análise mais profunda.

Como bem se sabe, o artigo 5º da Constituição Federal, prevê que “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País, a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade...”. Além disso, logo no inciso I, do predito artigo, está previsto que “homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição”.

Como se pode perceber, sob a ótica da nossa Constituição, o princípio da igualdade vale para todos, ou seja, não se é permitido fazer distinções em razão de sexo, raça, cor, profissão etc.

O princípio constitucional da igualdade (ou isonomia) deve ser entendido sob dois aspectos, quais sejam: igualdade no processo de criação de uma lei, de forma a evitar que se criem privilégios a um determinado grupo ou classe de pessoas, e, ainda, igualdade de tratamento perante a lei, ou seja, a lei deve ser aplicada, igualmente, a todos.

Assim, sendo certo que o princípio da isonomia visa evitar que o legislador, ao elaborar as leis, nela inclua fatores de discriminação, como, então, justificar a previsão legal do “feminicídio”?

Para que fique bem claro, não se está aqui afirmando que a inclusão do “feminicídio” no Código Penal seria um exagero, porém, em termos bem objetivos, é evidente que o novo tipo penal é, sem dúvida, “discriminatório”.

Com efeito, partindo do princípio de que homens e mulheres “são iguais em direitos e obrigações” e, ainda, que “todos são iguais perante a lei”, como justificar que, de um lado, o homem que mata uma mulher “por razões de gênero”, no âmbito de “violência doméstica e familiar”, seja punido nos termos do § 2º, do artigo 121, do C.P. (homicídio qualificado) e, de outro, a mulher que mata o marido “por razões de gênero”, no âmbito de “violência doméstica e familiar”, possa responder, a depender da hipótese, nos termos do caput do crime de homicídio (tipo simples, cujas penas variam entre 06 e 20 anos de reclusão)?

Em termos mais claros, nota-se que o legislador criou umdiscrímen entre homens e mulheres. De fato, o homem, ainda que venha a ser vítima de “violência doméstica”, não terá a mesma proteção legal que ora se pretende ver conferida à mulher.

Poder-se-á dizer que, como regra geral, o homem não é vítima de “crimes de gênero”, ou seja, ninguém mata outra pessoa pelo fato de ser homem.

Contudo, embora até seja mesmo possível compreender que, estatisticamente, a mulher sofre muito mais com a sua condição de “mulher” do que o homem, pelo fato de ser “homem”, fato é que, de acordo com o PLS, um dos fatores utilizado para justificar a existência de “razões de gênero” do “feminicídio” é a “violência doméstica e familiar”. E, como bem se sabe, ao menos nesse campo (violência doméstica), tanto o homem quanto a mulher podem ser vítimas.

Logo, fico claro que a discriminação criada pela lei não se baseia em dado objetivamente lógico. Até porque, é sempre preciso lembrar que a ideia de “violência doméstica” não compreende apenas a relação marido/mulher, companheiro/companheira etc., pois, como bem preceitua o §9º, do artigo 129, do C.P., o termo abrange a violência praticada contra “ascendente, descendente, irmão, cônjuge ou companheiro, ou com quem conviva ou tenha convivido, ou, ainda, prevalecendo-se o agente das relações domésticas, de coabitação ou de hospitalidade”.

Nota-se, portanto, que o conceito é bem mais amplo do que se imagina, já que que permite diversas situações práticas, nas quais, nem sempre, a mulher será a vítima. Excluir a homem desse cenário é, sem dúvida, um fator de discriminação, que desafia a igualdade pregada pela Constituição Federal.

Positivamente, caso fosse mesmo intenção do legislador proteger com mais eficiência as vítimas da violência doméstica, seria muito mais adequado e lógico que, ao invés de incluir o “feminicídio” no rol do § 2º, do artigo 121, do Código Penal - o que, como visto, pode ser compreendido como uma afronta ao princípio da igualdade -, a qualificadora para o homicídio fosse aplicada em todos os casos em que a vítima, seja homem seja mulher, tenha sido morta dentro de um contexto de “violência doméstica”.

Desta forma, pelo menos, a isonomia entre todos perante a lei seria devidamente resguardada.

. Por: Euro Bento Maciel Filho, advogado criminalista, mestre em Direto Penal pela PUC-SP e sócio do escritório Euro Filho Advogados Associados.

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