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11/03/2016 - 07:35

Microcefalia e aborto


O aumento nos casos de microcefalia no Brasil reabriu o debate sobre aborto no país. Por lei, no Brasil, só é permitido o procedimento em caso de estupro, risco à vida da mãe, ou quando o feto é anencéfalo. É interessante observar que no Brasil, muito embora a discussão sobre abortamento e outros temas da Bioética seja bastante singela, se comparada ao que ocorre nos países desenvolvidos, existe uma grande base de consenso quanto à interrupção da gravidez em várias circunstâncias, inclusive naquela em que se cogita apenas da maior ou menor conveniência de se sofrer uma gravidez em um determinado momento da vida. A tolerância quase absoluta na manutenção de clínicas abortivas, especialmente nas grandes cidades, e a ausência de uma consciência militante no sentido de esclarecer a população feminina, especialmente as adolescentes, sobre a realidade do abortamento muito tem contribuído para esse estado de coisas. Por outro lado, juizes brasileiros frente à alegada rigidez do Código Penal ao disciplinar a matéria, têm sido quase indulgentes quando na presença de casos apresentando alguma particularidade que recomende, segundo a consciência do magistrado, o deferimento da pretensão de abortar.

Como a lei brasileira permite o abortamento terapêutico apenas no caso de não haver outra maneira de salvar a vida da gestante, deixando de contemplar, assim, a hipótese do abortamento clinicamente recomendável, muitos juízes ditos progressistas têm autorizado abortamentos em situações de risco de vida da mãe e em casos de anomalias genéticas consideradas incompatíveis com a vida, ou seja, determinando desde logo a inviabilidade do ser em formação. Exemplo clássico é a anencefalia (ausência de cérebro no feto). Segundo se sabe, de 1992 até hoje, mais de duzentos e cinquenta abortamentos terapêuticos foram realizados com prévia autorização judicial, havendo oposição silente, mas firme, de vários juízes à ideia legislativa do deputado Severino Cavalcanti (PFL-PE) defendendo o direito à vida desde a concepção. Veio de Londrina, Paraná, a primeira decisão, em novembro de 1992, autorizando o abortamento por anomalia genética irreversível; foi o caso de uma jovem pobre, Cleusa Furtado, grávida de dois meses, que gerava um feto sem cérebro. O juiz entendeu não fazer sentido manter aquela gravidez se a criança ia nascer morta. A partir daí várias sentenças foram proferidas em verdadeira oposição ao determinado no Código Penal, levando-se em conta, especialmente, o avanço da medicina em nosso tempo, permitindo a constatação de anomalias no embrião, muito antes da fase de viabilidade fetal, realidade nem mesmo sonhada pelo legislador de 1940. Essas questões, segundo alguns juízes, devem determinar uma reinterpretação da lei. O caminho do abortamento por indicação eugênica ou médica, extremas, contudo, não é pacífico entre nós e, ainda quando a requerente consegue resultado judicial favorável, os obstáculos burocráticos e o custo de se buscar a via legal são desencorajantes, além de os serviços de seguro-saúde poderem se recusar a pagar as despesas inerentes à intervenção cirúrgica, uma vez cientes da verdadeira razão da internação hospitalar.

A verdade é que a questão do abortamento permanece um dilema de difícil solução; ela apresenta inúmeras facetas, todas importantes. Além dos dados da sociologia e do direito, são importantíssimas as crenças internas dos indivíduos e dos grupos, e o ensinamento das grandes religiões. A questão, por mais complexa que seja, pode ser reduzida a duas dicotomias fundamentais: a primeira é determinar-se a natureza do ato de abortar, se ele pode ser uma expressão da escolha pessoal da mulher, limitada ou não por injunções objetivas de vária natureza, ou se, ao contrário, a prevalência do valor da vida deva de se sobrepor a qualquer consideração pessoal, salvo o caso extremo da gravidez colocando em grave risco a vida da gestante. E, por segundo, devemos decidir sobre qual deva de ser a posição do Estado frente ao problema da vida intra-uterina; deve ele policiar a vida do cidadão, diretamente, editando leis restritivas, penais e administrativas, ou deve influir apenas indiretamente, pela educação, exemplo e liderança construtiva, pela criação e condução de programas práticos que levem o cidadão a governar a sua própria vida de maneira mais proveitosa e em harmonia com os princípios positivos da comunidade? Muitas pessoas acreditam em que seja muito pouco proveitoso, e até mesmo ineficaz, legislar abundantemente sobre questões de conteúdo eminentemente moral. Bons ou, ao menos, melhores resultados seriam alcançados através da educação do povo e da criação de meios para que a mãe, especialmente a adolescente, tivesse condições reais de opção.

Culturalmente, e por esta e não outra razão, juridicamente, a esfera de liberdade de escolha humana está, sim, limitada por injunções maiores que, longe de serem ofensivas da liberdade individual, são parâmetros pelos quais se pode medir o estado de internalização dos valores maiores por uma dada sociedade. Se realmente queremos proteger os direitos da mulher, o primeiro passo deve ser o de contar-lhe toda a verdade sobre o abortamento e lutar para que ele se torne cada vez mais raro. Assim, o caminho definitivo não pode ser, certamente, o de prestigiar a sua liberdade pela concessão filosófica de se reconhecer o produto da concepção como simples apêndice do corpo feminino. É certo que a retórica pró- abortamento costume pintar o feto como um punhado de tecido humano, mas nenhuma mulher ignora a realidade que se esconde na decisão de acabar com o feto; ela está se livrando de um seu próprio filho, absolutamente igual a outros que haja tido e que venha a ter no futuro, e isto em tudo: aparência, talentos e posição na árvore genealógica familiar.

Com o propósito ostensivo de se livrar de uma gravidez inconveniente para que possa a mulher ter outro filho em momento mais oportuno, pode ela perder, muita vez para sempre, a possibilidade de conceber, pois não são raros os casos de esterilidade em função da prática de abortamento ou do consumo exagerado de pílulas contraceptivas. Ainda, não são essas perdas apenas de natureza física. Querendo ou não os partidários do abortamento livre, a mulher ao abortar tem que se defrontar com a maior das perdas humanas: a de seu próprio filho. Perde-se, assim, não raro, o filho e a paz de espírito. Muitas mulheres amargam profundamente o seu ato de abortar e não parecem muito gratificadas com a liberdade e independência assim obtidas. Mas, as mulheres desejam abortar? A experiência indica que a mulher que chega à conclusão de que deve abortar não apenas venceu a barreira instintiva materna, geralmente poderosa, mas também está tomada do desespero e procura essa forma de escapar à pressão sabendo da negatividade envolvida, sabendo que tal solução de violência contra si mesma e seu filho implicará certamente em uma perda pessoal. A livre prática do abortamento, por essa razão fundamental, jamais será um sinal da liberdade da mulher, apenas de seu desespero.

. Por: Dr. João Mestieri, Advogado, especialista em Direito Penal / Criminal - Professor da Puc /RJ e membro da Academia Brasileira de Letras Jurídicas).

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