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01/09/2016 - 08:19

Repatriação de ativos: uma cuidadosa decisão

O cenário jurídico brasileiro apresenta atualmente como um de seus mais candentes temas o denominado Regime Especial de Regularização Cambial e Tributária (RERCT). Popularmente alcunhada de Repatriação de Ativos, a disciplina legal do tema foi trazida pela Lei nº 13.354, de 13 de janeiro de 2016. Posteriormente foi regulamentada pela instrução normativa nº 1.627 da Receita Federal, bem como mereceu considerações por meio de Parecer da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN/CAT 1.035/2016), dentre outros informes. O programa de regularização, a princípio possível de ingresso entre os dias 4 de abril e 31 de outubro de 2016, suscita muitas dúvidas, principalmente em razão da natureza e do contexto da edição da lei. Afinal, quais seriam os riscos de declarar à Fazenda a existência de ativos no exterior e, posteriormente, ver-se alvo de medidas criminais?

Para que seja possível entender as razões de tais dúvidas, é preciso, em primeiro lugar, considerar que se trata de uma norma jurídica que simultaneamente envolve assuntos próprios do Direito Tributário e do Direito Penal. Se a dinâmica de declaração de ativos e de recolhimentos de tributos e multas está bastante vinculada à atividade do tributarista, também é verdade que a análise das circunstâncias concretas de extinção de punibilidade de certos delitos é tarefa inerente ao penalista. Aqui é preciso perceber que o legislador brasileiro fez um cálculo, o qual considera, inclusive, a atual necessidade econômica e de arrecadação do País. O cidadão, portanto, que resolver declarar a existência de ativos no estrangeiro e recolher o valor previsto em lei, terá uma contrapartida: a extinção da punibilidade, em razão da anistia, dos crimes de evasão de divisas, sonegação fiscal e previdenciária, falsidades documentais e algumas espécies de lavagem de dinheiro. Trata-se, portanto, de uma medida pragmática, de custo-benefício na relação entre o Estado e o cidadão.

A legislação, contudo, impõe certos cuidados. O primeiro deles consiste na verificação, sempre à luz do caso concreto, da possibilidade de ingresso do contribuinte no regime. Isto porque a própria lei veta em seu artigo 11 aquelas pessoas expostas politicamente, impedindo o benefício da anistia para os ocupantes, em 14 de janeiro de 2016, de cargos, empregos ou funções públicas de direção ou eletivas, mesmo se exercidos por cônjuges ou parentes até o segundo grau. Tal disposição, em termos penais, apresenta duvidosa constitucionalidade, devendo, desde logo, ser objeto de profunda análise jurídica sobre a natureza desta norma, além, evidentemente, das circunstâncias pessoais do contribuinte disposto à repatriação.

Outro problema bastante complicado reside nos tipos penais que serão objeto de anistia. Por exemplo, a lei previu, em termos gerais, os tipos de falsidades documentais (material e ideológica) previstos no Código, esquecendo-se que, no tocante às falsidades, existe um espectro muito grande de outros delitos, cuja essência também consiste na existência de falsos. Imagina-se aqui os crimes falimentares, societários, relacionados ao mercado de capitais e instituições financeiras etc. Mais uma vez, todos estes aspectos devem ser objeto de amplo estudo por parte dos candidatos ao ingresso, haja vista as peculiaridades e os riscos a envolver cada uma das operações.

O mesmo ocorre com o dilema a respeito da correta forma de declarar. A Lei 13.254/2016 afirma textualmente que deverão ser considerados apenas os valores existentes no exterior em 31 de dezembro de 2014, ou seja, bastaria uma fotografia deste momento pontual. Já as autoridades administrativo-fazendárias alegam que deverão ser também declarados, com a respectiva incidência de tributo e multa, todos os valores já existentes, ainda que gastos. Nesta lógica, não seria suficiente a mera fotografia, mas a exigência recairia na reconstrução pretérita de todos os ativos, isto é, um filme composto por diversas cenas. Tamanho é o imbróglio sobre a questão que o próprio Governo Federal já dialoga com o Congresso Nacional a possibilidade de regras mais claras, inclusive com a dilação do prazo para o ingresso no regime de novos e potenciais contribuintes.

Vale ainda mencionar, no espaço que compete a este texto, o risco sempre existente da utilização das informações prestadas para iniciar uma persecução penal em desfavor do candidato a ingressante. Ainda que a lei afirme que a declaração, por si só, não poderá ser utilizada para fins de investigação criminal, sempre resta a dúvida destes limites, principalmente a se pensar nas comunicações que poderão ser feitas entre a Receita Federal e o Ministério Público. Eis aí mais um risco a ser aferido.

De todo modo, a legislação, acompanhando diversas outras experiências internacionais, parece vir em boa hora, merecendo, entretanto, reparos e ajustes com a finalidade de garantir, principalmente, a segurança jurídica. Basta lembrar que os acordos de informações financeiras são atualmente uma realidade, com o que não mais será possível, em curto espaço de tempo, a manutenção de ativos não declarados no exterior. Exemplo disso é o próprio Decreto 8.003/2013, que promulgou acordo entre o Brasil e os Estados Unidos para o intercâmbio de informações relativas a tributos com lastro na legislação norte-americana (FATCA).

Em suma, estes e outros pontos são profundos e detalhados, competindo ao contribuinte verificar com atenção e cuidado as vulnerabilidades, riscos e vantagens que poderá criminalmente obter com o ingresso no regime.

. Por: Alamiro Velludo Salvador Netto, sócio de Souza e Velludo Salvador Advogados. Professor Livre-docente de Direito Penal da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Presidente do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária do Ministério da Justiça.

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