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Acordos minilaterais de integração e de liberalização do comércio: O caso da América Latina


Os acordos minilateralistas ameaçam o sistema multilateral? Uma questão recorrente nos debates sobre a evolução atual (e futura) do sistema multilateral de comércio é a de saber se a profusão de acordos bilaterais de comércio, tal como observada atualmente, representa uma ameaça ao multilateralismo. A resposta mais direta, e mais simples, poderia ser traduzida num sonoro sim. Sim, a profusão, uma verdadeira proliferação, diriam alguns, de acordos bilaterais ou minilaterais de comércio constitui, de fato, uma ameaça ao sistema multilateral de comércio. A segunda observação que poderia ser feita, imediatamente, seria esta: não há nada a ser feito de imediato, pois esses acordos continuarão a se disseminar no futuro previsível.

Observando-se a evolução do sistema multilateral de comércio, nos últimos 20 anos pelo menos, a constatação que pode ser feita é: esses acordos seletivos e restritos – tanto no sentido geográfico como em seu conteúdo substantivo – têm assumido um espaço cada vez mais importante na arquitetura institucional do sistema multilateral de comércio, bem como na composição dos fluxos reais de bens e serviços que são intercambiados diariamente num planeta, hoje, quase inteiramente globalizado. Pode-se dizer “quase”, porque ainda permanecem algumas “terras incógnitas” do ponto de vista da abrangência das trocas capitalistas e no que se refere às regras que presidem alguns tipos de intercâmbio.Mas elas estão diminuindo cada vez mais.

Com efeito, a evolução do sistema multilateral de comércio foi notável, desde a entrada em vigor – provisória, relembre-se – do velho General Agreement on Tariffs and Trade (GATT-1947), negociado em um dos antigos locais da Sociedade das Nações, em Genebra, até a atual rodada multilateral de negociações, cujo título, o de uma capital de um minúsculo emirado árabe, traduz bem esse sentimento de sucesso pela amplitude da obra realizada.

Os founding fathers do GATT, em primeiro lugar os americanos, podem, justificadamente, sentir-se orgulhosos pelos bons resultados atingidos em pouco mais de meio século. De algo perto da metade do comércio internacional, no imediato pós-Segunda Guerra, as regras multilaterais do renovado GATT-1994 cobrem, hoje, mais de 95% dos intercâmbios, com tendência ao crescimento próximo da saturação. A Rússia deve entrar no sistema multilateral da Organização Mundial do Comércio (OMC) nos próximos meses, senão semanas, com o que o quadro multilateral estará virtualmente completo, pois mesmo um dos dois únicos bastiões do socialismo, Cuba, dele faz parte (desde a origem, aliás, como confirmado pela Carta de Havana de 1948, natimorta, mas prometedora). Dele ficarão ausentes alguns pequenos países, se tanto, que representam menos de 2% das trocas globais, mas o sistema é hoje praticamente mundial, senão universal.

O sistema multilateral de comércio pode, portanto, ser considerado um tremendo sucesso, provavelmente mais do que a própria Organização das Nações Unidas (ONU) ou De acordo com dados da OMC, existiriam, atualmente, mais de 160 acordos regionais em vigor, havendo ainda outros 70 não notificados. Dos mais de 200 acordos “minilaterais”, nada menos do que três quartos foram assinados a partir de 1995.

O tão vilipendiado Fundo Monetário Internacional (FMI), seus mais próximos concorrentes em termos de importância e de abrangência política e geográfica. Como essas duas entidades, o sistema hoje presidido pela OMC pode, talvez, ser acusado de ineficiência relativa, já que ele não consegue eliminar as ameaças potenciais à sua arquitetura institucional provavelmente imperfeita, mas insubstituível, no gênero, como tampouco consegue eliminar os muitos focos de instabilidade sistêmica, de assimetrias estruturais, de desigualdades históricas, remanescentes ou criadas ao longo desse último meio século.

Sua responsabilidade é basicamente econômica, ou melhor, simplesmente comercial, não cobrindo aspectos da paz e da segurança internacionais, como a ONU, ou o mundo das finanças mundiais, como os dois irmãos mais velhos de Bretton Woods. O comércio sempre foi fonte de riqueza, de prosperidade, de bem-estar, de transferência de tecnologia, de avanços sociais, enfim. O comércio é, sobretudo, um propagador de causas avançadas, de liberdade de pensamento, como confirmado nesta frase de um grande historiador econômico, David Landes: “... se os ganhos derivados do comércio de mercadorias são substanciais, eles são pequenos quando comparados com o intercâmbio de idéias”.

O sistema multilateral de comércio: um sucesso aparente - O mundo é, por certo, mais próspero hoje do que era em meados do século XX. Ele é, também, em seu conjunto, bem mais industrializado, comparativamente à primeira metade do século XX, quando as zonas industriais estavam quase todas restritas ao norte desenvolvido e eram desiguais e esparsamente espalhadas por alguns arquipélagos no hemisfério sul. Desse ponto de vista, ele aparece, portanto, como mais homogêneo tecnologicamente, mas ele também parece ser mais desigual na repartição dos benefícios dessa industrialização tardia.

Alguns economistas arriscam dizer que o mundo atual é menos convergente, do ponto de vista das tendências de desenvolvimento e das oportunidades de bem-estar, do que ele foi durante o ativo esforço desenvolvimentista do imediato pós-guerra, quando estiveram em vigor políticas macroeconômicas e setoriais bem mais intervencionistas do que na atual fase de globalização. Os antiglobalizadores não hesitam em atribuir à integração dos mercados as tendências – não provadas – à concentração de renda e ao crescimento das desigualdades entre os países e dentro dos países. As origens dos processos paralelos e contraditórios de convergência e de divergência na economia mundial – e, portanto, entre as economias nacionais, se esse conceito ainda for válido – não foram ainda determinadas com precisão pelos economistas e historiadores. Há certa hesitação quanto às responsabilidades relativas do progresso tecnológico de base interna, por um lado, e da disseminação, por outro lado, das inovações industriais, de modo geral, a partir, justamente, do comércio internacional.

A construção normativa do sistema multilateral de comércio registrou, de certo modo, uma evolução paradoxal. De um lado, houve o reforço dos princípios tradicionais de nação mais favorecida (NMF), de tratamento nacional, de reciprocidade, de transparência e de igualdade de direitos e de obrigações, o último temperado parcialmente pelo tratamento diferencial e mais favorável para as partes contratantes menos desenvolvidas. De outro, ocorreu o aprofundamento e a disseminação dos esquemas minilateralistas e dos arranjos geograficamente restritos, ofendendo a primeira dessas cláusulas, a de NMF.

Parte da convergência observada entre os mais ativos participantes do sistema econômico mundial – na renda, nos modelos de política econômica, nos mecanismos de atuação do Estado – pode ser atribuída à homogeneização progressiva e à coordenação, tentativa, mas real, das políticas macroeconômicas nacionais. Esse modelo poderia ser catalogado como sendo “OECD-like”, sendo também disseminado em foros como os do G-7, das instituições de Bretton Woods, no vilipendiado Consenso de Washington ou em encontros do World Economic Forum, em Davos. Quanto dessa prosperidade é em razão da existência e da ampliação progressiva do tradicional sistema multilateral de comércio pode ser atestado pelos níveis incomparavelmente mais altos de bem-estar registrados nos países ativamente participantes do sistema do que naqueles que se mantiveram à margem de suas regras e princípios. Quanto das iniqüidades e das desigualdades persistentes na distribuição de renda e riqueza em escala mundial pode ser atribuído às próprias regras do sistema, como gostam de apregoar os antiglobalizadores, ainda é matéria sujeita a debate entre os especialistas. Mesmo os melhores economistas ainda divergem a esse respeito, mas as evidências empíricas acumuladas nessa área militam em favor das tendências essencialmente integradoras da globalização, voltadas, portanto, para a homogeneização, a largo prazo, dos sistemas econômicos nacionais.

O que é certo – e poucos disputarão as evidências – é que o comércio traz consigo prosperidade e quanto mais comércio ocorrer, as possibilidades de bem-estar são ainda melhores e maiores. Isso pode ser matematicamente aferido mediante uma simples tabela comparativa que coloque em contraste, lado a lado, o Produto Interno Bruto (PIB) per capita de países selecionados e seus respectivos coeficientes de abertura externa, isto é, a proporção do comércio exterior na formação do produto. Com algumas poucas exceções, explicáveis pela importância excepcional do mercado interno na composição do produto bruto, há uma correspondência imediata entre renda per capita e abertura comercial externa (para não mencionar a abertura aos investimentos e ao intercâmbio de idéias).

Não deveria, normalmente, mais ocorrer qualquer tipo de disputa em torno dessas questões, pelo menos não desde que Adam Smith golpeou decisivamente os bastiões intelectuais do mercantilismo e do protecionismo comercial, ou seja, quase 230 anos atrás.

O mercantilismo, ou seja, a doutrina que visava a encorajar a exportação, a desestimular a importação e a transacionar em moeda forte – isso se fazia, antigamente, pela acumulação de ouro e de metais preciosos – encarava o comércio exterior como um instrumento de poder, em prejuízo das demais nações, e em benefício dos segmentos ligados à exportação, aliás, o único setor que liberava recursos reais, sob a forma de impostos, para a autoridade política.

Protecionismo na prática: industrialização à la List - O mercantilismo já se foi, mas ele deixou vários órfãos inconsoláveis e algumas viúvas não convencidas. A despeito das lições de Smith e de David Ricardo, muitos ainda apelam para doutrinas protecionistas e mercantilistas, seguindo no caso os ensinamentos de Friedrich List, que publicou sua obra principal, O Sistema Nacional de Economia Política, em meados do século XIX. Para testemunhar sobre a permanência das idéias de List e sua teoria a respeito da proteção da indústria infante, basta referir-se ao sucesso intelectual, em pleno século XXI, do livro de Ha-Joon Chang, Chutando a Escada que reproduz, aliás, em seu título, uma frase do citado economista alemão.

List era, no plano teórico, um defensor moderado do protecionismo comercial, que ele via como transitório, parcial e estritamente limitado às necessidades de industrialização de um país atrasado como a Alemanha do início do século XIX. O jovem Marx, o mesmo do Manifesto Comunista, que nada mais constitui senão um hino em louvor da globalização, era um defensor pragmático do livre comércio, que considerava uma poderosa alavanca para a disseminação do modo capitalista de produção nos reinos bárbaros do Oriente e no mundo todo, o que poderia apressar o advento do socialismo.

Desde meados do século XIX, quando List e Marx começaram a escrever, o livre comércio fez progressos inquestionáveis, mesmo se os seus fundamentos teóricos e as suas bases empíricas continuaram a ser atacados continuamente, tanto por economistas teóricos como por políticos pragmáticos. No primeiro grupo, podemos colocar o romeno da primeira metade do século XX, Mihail Manoïlescu, cuja Teoria do Protecionismo foi traduzida no Brasil nos anos 1930 e muito lida e apreciada pelos industriais paulistas. Entre os políticos, são poucos os que proclamam sinceramente as virtudes superiores da liberalização comercial unilateral, como poderia fazer qualquer economista ricardiano.

Os desenvolvimentos posteriores não foram muito gratificantes: depois da ativa política industrial praticada pela Alemanha bismarckiana, a Grã-Bretanha voltou a recorrer ao protecionismo assim que se sentiu ameaçada pela concorrência de potências comerciais mais poderosas. A França e outras nações seguiram o mesmo caminho, para desespero dos economistas liberais. O desastre completou- se com a adoção da Tarifa Smoot-Hawley dos EUA, em 1930, e a política seguida nesse país de acordos bilaterais com tarifas seletivas e estritamente bilateralizadas.

Depois dos desastres comerciais, cambiais e monetários dos anos 1930, as bases do sistema multilateral de comércio foram estabelecidas de modo mais ou menos sólido no imediato pós-Segunda Guerra, graças à liderança demonstrada pelos Estados Unidos na elaboração das regras que presidiram o GATT durante mais de meio século e que foram paulatinamente sendo “absorvidas” por outros acordos gerais ou parciais de comércio a exemplo do General Agreement on Trade in Services (GATS), até serem incorporadas no edifício da OMC a partir de 1995. Na verdade, o sistema convive, desde sua origem, com a derrogação minilateralista, consagrada no artigo 24 e consubstanciada no único modelo que existia então de bloco comercial, o do Benelux. 7 Ele foi acompanhado, a partir dos anos 1950, pelo processo de integração europeu, e pelas diversas tentativas feitas nesse sentido na América Latina, mas estas últimas nunca tiveram, como o exemplo mais robusto da Europa, condições de afetar significativamente o sistema multilateral de comércio, que começou a ser erodido parcialmente pelos próprios países desenvolvidos nos setores de têxteis e agricultura desde muito cedo.

Depois de muitas rodadas liberalizantes de comércio, a maior parte dos países desenvolvidos ostenta hoje uma baixa proteção tarifária, mas que é compensada por um sistema restritivo e subvencionista na área agrícola (quotas de importação, altas tarifas e sistema extensivo de apoio interno e subvenções às exportações) e algumas restrições setoriais, como em tecidos e vestuário. O setor têxtil libertou-se, depois de quase meio século, das práticas mercantilistas adotadas no regime Multifibras desde os anos 1960, mas demandas por salvaguardas continuam a freqüentar os círculos decisórios em todos os países importadores de tecidos e roupas. O recurso abusivo a sistemas antidumping e outras medidas de defesa comercial colocam obstáculos continuados à liberalização ampliada do comércio, da mesma forma como a alegação indevida de outras formas de concorrência desleal, como nos casos do custo da mão-de-obra ou o respeito inadequado ao meio ambiente.

O minilateralismo entra em cena: regionalização e globalização na atualidade- O movimento minilateralista, iniciado em sua versão moderna, a partir dos progressos da integração européia, em meados dos anos 1980, foi paradoxalmente impulsionado pelas tendências globalizadoras da década seguinte, o que não deixa de colocar novos desafios, tanto do ponto de vista teórico, em especial para os liberais institucionalistas, como no plano das práticas econômicas, em função das supostas virtudes multilateralizantes da globalização. Esse movimento pode dar-se, em parte, como resultados dos núcleos duros de proteção setorial, em especial na área agrícola, nos próprios países desenvolvidos, motivando a busca de aberturas seletivas com preservação de áreas fechadas e impermeáveis à liberalização. Ele pode ser explicado, também, como o produto tardio das novas facilidades criadas pela chamada cláusula de habilitação da Rodada Tóquio (1979), bem como das tendências renitentes às políticas de substituição de importações praticadas pelos países em desenvolvimento. O fato de que as políticas nacionais tratando dos investimentos diretos estrangeiros não tenham sido liberalizadas tanto quanto as políticas comerciais dos países participantes do sistema multilateral de comércio pode também explicar algo desse movimento em favor do minilateralismo. Não custa lembrar que os fluxos de investimentos diretos adquiriram, ao lado do intercâmbio comercial, o papel de alavanca principal do processo de globalização não-financeira.

Muitos analistas argumentam, entretanto, que o fator mais importante que poderia explicar essas novas tendências do sistema comercial multilateral tem a ver com o problema da liderança, isto é, do exemplo dado pelo “hegemon” – Estados Unidos (EUA) – ou pelos “hegemons” – incluindo, portanto, a União Européia (UE) e o Japão – no estabelecimento de um novo ambiente, favorável a esses arranjos restritos, em detrimento do sistema como um todo. Nos EUA, em particular, os interesses econômicos refletidos no Congresso evoluíram do novo protecionismo dos anos 1970 para o unilateralismo agressivo dos anos 1980 e para o minilateralismo declarado da década seguinte, como revelado nas iniciativas no plano hemisférico e mais além.10 O próprio crescimento do GATT, das poucas dezenas de partes contratantes nos anos 1960, para uma centena e meia de membros da OMC no período atual deve ter acarretado, por sua dinâmica de diversificação dos interesses, uma pressão maior em favor dos arranjos geograficamente restritos. O acesso a mercados é sempre mais fácil de ser negociado em bases restritas do que no plano mais amplo do multilateralismo tradicional.

Na prática, apenas os grandes atores comerciais internacionais, em primeiro lugar os EUA e a UE, têm condições de atuar em todos os planos possíveis das interações comerciais, adotando, de forma alternada ou sucessiva, estratégias ditas unilateralistas, bilateralistas, minilateralistas ou, enfim, multilaterais, segundo as conveniências de cada momento.

Quando interesses comerciais de curto prazo estiveram ameaçados nos anos 1980 (na área automobilística, com a ameaça japonesa, por exemplo), esses países não hesitaram em recorrer a práticas mercantilistas, mesmo as mais abusivas. O mesmo ocorreu, na década seguinte, na agricultura, com o uso crescente de medidas de apoio interno e de subvenções às exportações em escala jamais vista no comércio mundial. A liberalização competitiva só acontece de fato em acordos bilaterais ou sub-regionais.

Atores de segundo plano, como o Brasil ou a Índia, preferem adotar abordagens diferenciadas em política comercial, privilegiando uma ou outra estratégia segundo seus recursos de poder e modos específicos de inserção econômica regional ou internacional.

Desde meados dos anos 1980, o Brasil tem demonstrado nítida opção pela abertura lenta e gradual em escala regional, modulando o ritmo e a amplitude da liberalização comercial em função da preferência pelo Mercosul e pela América do Sul. Outros países da região como México e Chile têm impulsionado uma estratégia de liberalização mais ampla, voltada para os mais diferentes parceiros comerciais. No caso do Chile, por exemplo, parece evidente a preferência pelo multilateralismo unilateral, materializada em uma política aberturista como opção comercial básica e uma estratégia, não limitada à América Latina, tendente a negociar tantos acordos de livre comércio quanto possível com o maior número de parceiros, sem discriminação geográfica ou política.

Minilateralismo regional: estratégias diferenciadas de liberalização comercial - A América Latina, precisamente, é uma das regiões de maior intensidade e volume de acordos minilateralistas hoje registrados, contraídos tanto dentro quanto fora da região.

De fato, desde a primeira conferência internacional americana de Washington, em 1889, até a recente experiência (até aqui frustrada) da Área de Livre Comércio das Américas (Alca), o hemisfério como um todo tem sido recorrente nas tentativas de unificação comercial, sem que tais esforços tenham sido materializados, até aqui, em esquemas suscetíveis de enquadrar os fluxos existentes nas poucas regras básicas do que veio a ser conhecido como “regionalismo aberto” (que permanece um conceito praticamente vazia implicaria a interpenetração dos vários arranjos bi ou plurilaterais feitos pelos países da região, na ausência de tendências excludentes ou regras exclusivas. O que se tem observado, na prática, é o chamado “prato de espaguete” de Jagdish Bhagwati (the spaghetti bowl problem) com diferentes formatos de acordos preferenciais sendo servidos com molhos (regras de origem) de diferentes sabores.

No caso que nos interessa mais de perto, o do Brasil e do Mercosul, a pergunta recorrente é a de saber se esse esquema minilateralista tem servido para, como afirmado no preâmbulo ao Tratado de Assunção, “lograr uma adequada inserção internacional para os países membros” ou se, ao contrário, ele tem permitido mais desvio do que criação de comércio. O argumento negativo foi oferecido mais de dez anos atrás por Sebastian Edwards, em estudo que utilizou o exemplo da indústria automobilística para confirmar os efeitos potencialmente distorcivos do comércio induzido no bloco sub-regional. Na época, a dinâmica do crescimento geral de comércio, dentro e fora do Mercosul, superava a tendência ao enclausuramento minilateralista, o que permitiu rejeitar as alegações de Edwards, sob pretexto de que os efeitos criacionistas seriam superiores aos desviantes. Todavia, os conflitos recorrentes em matéria de bens industriais no comércio bilateral Brasil-Argentina, bem como a recondução continuada do comércio administrado no setor automobilístico oferecem, justamente, a comprovação dos problemas potenciais trazidos pelos acordos minilateralistas quando baseados estritamente nos ganhos recíprocos de mercado, num relativo isolamento das pressões competitivas globais.

Desde o surgimento desse debate, em meados dos anos 1990, o Mercosul não teve sucesso no estabelecimento do prometido mercado comum e sequer chegou a completar a sua união aduaneira, havendo ainda diversas lacunas em sua zona de livre comércio. As crises econômico-financeiras respectivas nos seus dois principais membros demonstram, igualmente, que Brasil e Argentina estão dispostos a utilizar o Mercosul para ganhos mercantilistas de comércio ou enquanto plataforma comercial para o exterior, desde que ele não obrigue cada um deles a empreender reformas muito amplas em suas políticas industrial, tributária e mesmo comercial. Dada a menor dependência do Brasil do comércio intraregional e a maior competitividade de sua indústria, relativamente à modesta capacitação e modernização produtiva da Argentina, o protecionismo moderado do Brasil oferece um menor potencial de risco do ponto de vista das regras multilaterais de comércio, o que não parece ser o caso, atualmente, da Argentina, engajada num sério esforço de reindustrialização.

Ambos os países, no entanto, convergem, na presente conjuntura, para uma recusa decidida da proposta de uma Alca, segundo o modelo apresentado pelos EUA, ao mesmo tempo em que se empenha em multiplicar os arranjos preferenciais de comércio contraídos na própria região, ao abrigo da Aladi. Paradoxalmente, essa estratégia tem sido adotada, com maior sucesso relativo, pelos EUA, que, desde o início da terceira fase da Alca – depois da cúpula de Québec, em abril de 2001 –, também seguiram a estratégia minilateralista, fracionando suas ofertas para a futura (e agora hipotética) Alca segundo a natureza dos parceiros. Ao Mercosul ficaram reservadas as ofertas mais delongadas e, previsivelmente, as maiores exceções (setorialmente concentradas nas áreas de maior competitividade sistêmica da Argentina e do Brasil).

Paralelamente, os EUA passaram a negociar bilateralmente (plurilateralmente no caso dos países andinos, com a exceção da Venezuela de Chávez) acordos comerciais que eles chamam de “liberalização competitiva”, afirmando que sua propagação levará, no futuro, à liberalização multilateral. Coincidentemente, nesses acordos bilaterais – com o Chile, com o Marrocos, com a Jordânia e Cingapura, ademais da Central America Free Trade Agreement (CAFTA), ou seja, países da América Central mais República Dominicana –, os EUA logram introduzir a panóplia de temas paralelos que eles têm dificuldades em impulsionar no plano regional e no quadro multilateral: propriedade intelectual, liberalização dos movimentos de capitais, regras laborais e ambientais. Como os pequenos países não têm poder de barganha, essas conquistas que podem ser classificadas propriamente de imperiais cumprem seu papel diversionista em vários sentidos: elas repercutem bem, politicamente, no Congresso e fazem avançar a causa americana no âmbito das negociações comerciais mais amplas.

O minilateralismo brasileiro, a exemplo do americano e do europeu, também é politicamente motivado, mas, além de defensivo, ele tem conotações geopolíticas ainda mais marcadas do que as dos EUA e da UE na presente conjuntura. De fato, a estratégia minilateralista seguida pelos EUA parece ser bem mais preventiva – visando a garantir antecipadamente ganhos potenciais que depois serão incorporados em esquemas multilaterais – do que defensiva seguida pelo Brasil e seus parceiros do Mercosul como uma espécie de compensação, ou de seguro, pelas dificuldades, reais ou percebidas, em concluir acordos comerciais ditos de terceira geração.

Diversamente dos acordos que tanto o México como o Chile fizeram com seus principais parceiros – que, exatamente como no nosso caso, são os EUA e a UE –, o Brasil persegue metodicamente, tanto por vias próprias como através do Mercosul, uma política de atração de países em desenvolvimento, na América do Sul, na África, no Oriente Médio e na Ásia. Esses objetivos políticos, parte da estratégia de relacionamento Sul-Sul, têm adquirido preeminência especial em face dos requerimentos estritamente comerciais que acordos desse tipo deveriam ostentar, podendo inclusive afetar de modo negativo a estratégia microeconômica das empresas exportadoras, forçadas a buscarem elas mesmas os mercados e os parceiros que o Governo não lhes tem sabido garantir.

Conclusões: o futuro do minilateralismo - A geopolítica político-comercial do Mercosul, tal como impulsionada pelo Brasil, tem sido complementada pelo projeto de integração sul-americana, consubstanciada na Comunidade Sul-Americana de Nações, outra estratégia minilateralista que deveria, em princípio, fechar o arcabouço de acordos comerciais desse tipo na região. As preferências até aqui trocadas entre os países membros da Comunidade Andina (CAN) e do Mercosul não têm acrescentado ganhos substanciais em relação aos tradicionais acordos aladianos – universo ao qual eles pertencem, diga-se de passagem –, contribuindo ainda mais para a conformação de um cenário tipicamente “prato de espaguete”, tão temido por partidários do livre comércio como Jagdish Bhagwati.

O ingresso da Venezuela no Mercosul, em 2006, pode contribuir para agregar outros elementos de anomia comercial ao quadro de relativo abandono dos objetivos iniciais, essencialmente comerciais, do bloco do Cone Sul. De resto, a ênfase política na aproximação, mais do que na liberalização econômica, bem como a aceitação de regras específicas e prazos mais delongados, com um forte viés de introversão comercial, parecem atualmente caracterizar esses projetos ou esquemas voltados para a própria região, contradizendo o espírito mais universalista que animava antigamente o conceito de regionalismo aberto.

Esses exemplos americanos, ao lado da estratégia assistencialista desenvolvida pela UE em direção da clientela periférica dos países de menor desenvolvimento relativo – os PMDRs, do chamado grupo África, Caribe e Pacífico (ACP) –, configuram, portanto, a confirmação cabal de que o multilateralismo atual tem de conviver com um regionalismo disforme, oportunista e basicamente disfuncional em relação aos princípios do sistema econômico multilateral definido no imediato pós-Segunda Guerra.

O sistema econômico multilateral terá, provavelmente, de enfrentar uma longa travessia do deserto antes de reencontrar terreno mais favorável para seu florescimento e expansão.

. Paulo Roberto de Almeida é Diplomata, Bacharel em Ciências Sociais pela Universidade de Bruxelas (1975). Mestre em Planejamento Econômico pela Universidade de Antuérpia (1977) e Doutor em Ciências Sociais pela Universidade de Bruxelas (1984). Professor de Economia Política Internacional no curso de Direito do Centro Universitário de Brasília (UniCEUB). Contatos: www.pralmeida.org. (Ensaio de caráter reflexivo que analisa, historicamente, o desenvolvimento das exceções à cláusula de nação-mais-favorecida do sistema multilateral de comércio, sob a forma dos acordos bilaterais ou plurilaterais que constituem blocos comerciais, sejam zonas de livre comércio ou uniões aduaneiras. Conclui que a despeito dos problemas criados pelo chamado “minilateralismo” ele continuará a se desenvolver no período contemporâneo. São examinados os casos desenvolvidos na América Latina).

Por: Centro Brasileiro de Relações Internacionais (CEBRI)

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