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31/05/2017 - 07:40

Jaildo Marinho no MAM Rio de Janeiro: poder da repetição


Cada arte tem suas técnicas de repetições imbricadas, cujo poder crítico e revolucionário é suscetível de atingir o ponto mais elevado para nos conduzir das tediosas repetições do hábito às profundas repetições da memória e, em seguida, às derradeiras repetições da morte, em que está em jogo a nossa liberdade.Gilles Deleuze. “Diferença e repetição” (Lisboa: Relógio d’Água, 2000), p. 275.

A exposição do MAM Rio sobre a obra de Jaildo Marinho está organizada em torno de uma instalação central: “Cristalização” (2017). Em um ambiente impregnado pelas cores da ametista, essa peça é construída em redor de um vácuo: essa é, em geologia, a condição para que o tempo infinito dos processos minerais venha a formar cristais que, ao se desenvolverem livremente, acabam constituindo um geodo.

Essa estrutura central é, mais amplamente, o emblema da exposição inteira, a qual funciona em seu conjunto à maneira de uma estrutura cristalina, reproduzindo na escala do Museu o longo processo através do qual se elabora o mundo mineral, mediante reduplicações e simetria. Em sua forma perfeita, o processo de cristalização produz cristais de rocha: é essa fabricação silenciosa e milenar que está configurada em “Cristalização”.

O tempo infinitamente profundo da geologia é precisamente o inverso daquele que dá o ritmo de nossa existência. A temporalidade dos minerais, comparada à nossa, parece infinita. Seu fluxo bastante lento – às vezes, pontuado por um episódio eruptivo – está submetido a uma lógica linear que contrasta com o perpétuo recomeço vivenciado pelas plantas, pelos animais e, por conseguinte, também pelos seres humanos. O tempo da natureza viva é um ciclo, em que a morte da semente engendra o crescimento da espiga que, por sua vez, produzirá a semente da próxima germinação. Em vez disso, o mundo mineral é unidirecional, entrópico, forçado pela lei da degradação constante de suas organizações a tender para o caos; ela é que transforma as montanhas em areia e os cristais em pó de sílica.

Duas famílias de artistas assenhorearam-se dessas temporalidades marcadas por um simbolismo oposto: por um lado, aquela de que faz parte Piet Mondrian, o qual persegue na pintura a ideia de um mundo inteiramente construído em que viesse a predominar a pureza das formas geométricas de modo que uma forma haveria de se organizar em relação à outra – um mundo de perfeição, um mundo ideal, cuja causa seria o demiurgo humano. Por outro lado, um artista fascinado pela erosão que destrói os Himalaias, tal como Robert Smithson, que dá continuidade, apaixonadamente, ao trabalho da entropia fatal.

Trata-se não apenas de propensões estéticas: essas duas atitudes constituem visões do mundo, escolhas éticas e simbólicas. Poderíamos atribuir-lhes um qualificativo: “construtivista” para uma e, para a outra, “desconstrucionista”. Ambas irrigaram o pensamento e o campo visual do séc. XX, após o advento do cubismo analítico. Jaildo Marinho situa-se resolutamente na linha construtivista, oriunda de Malevitch e Mondrian, a qual se alforriou do mundo concreto com a vontade de se tornar a matriz de uma linguagem universal, sem relação com o mundo material do cotidiano tão constantemente representado na pintura da Antiguidade.

Sem evocar o retorno de Malevitch à figuração – cujas circunstâncias são múltiplas e complexas –, convém admitir que o projeto extremo de Mondrian, alardeando o firme propósito de superar a ilusão espacial mediante a produção de uma superfície plana ideal, acabou sendo um fracasso. Seus quadrados coloridos não aboliram a linha que, aliás, constitui a aresta deles; e, contra a sua vontade, o pintor foi forçado a aceitar que a interseção dessas linhas produzia, por sua vez, na tela uma ilusão espacial, precisamente aquela que ele tinha pretendido abolir.

Não é certo, no entanto, que se imponha, atualmente e em retrospectiva, posicionar-se simplesmente na lógica que esse artista tinha desejado privilegiar e, por conseguinte, tirar a conclusão de seu fiasco. Em vez disso, e reconhecendo toda a importância das últimas telas do holandês – tais como “Brooklyn Boogie Woogie” (1942) ou “New York City II” (1942-1944) –, é possível enxergar, nesse momento derradeiro de sua obra, a abertura de um verdadeiro novo campo da arte, em que as incertezas da sensação plástica ganham um novo espaço de jogo, renovando a própria questão da inovação. É nessa perspectiva que se deve abordar a exposição de Jaildo Marinho.

O que acontece quando fixamos nosso olhar em uma de suas obras, revestindo as paredes exteriores dessa instalação complexa? Aparece uma moldura enquadrando uma moldura enquadrando uma moldura. Há mudança de cores, mas não de estrutura. A moldura intermediária induz um desligamento. Nosso olho, pensativo e aturdido, afunda-se nessa armadilha óptica que enfatiza um vácuo central. Uma ausência de imagem, mas não de pensamento: o que enxergamos é o limite extremo das superfícies coloridas, reduzido a quase nada antes do desaparecimento destas.

Resta apenas o enquadramento das superfícies coloridas. Essa tela acaba fixando, sob a forma de linhas, a realidade palpável, nominável e pensável das superfícies coloridas. Ela dá uma forma às ambivalências do olho, órgão submetido às linhas e cores, as quais – tal como havia compreendido perfeitamente Mondrian – constroem incessantemente profundidades e volumes, até mesmo quando o artista tivesse a pretensão de incluir tudo na única dimensão da superfície plana de sua tela.

Seria possível afirmar que a produção de Mondrian, em termos de imagem, será teorizada na geração seguinte através das pesquisas sistemáticas de Jesús Soto: este leva a sério a questão do poder ilusionista da linha confrontada com a superfície geométrica. Ao construir a sua obra a partir dos efeitos ópticos das linhas – linhas pintadas, linhas materializadas e, até mesmo, sombras projetadas – e da respectiva interferência com superfícies coloridas, Soto abriu para a pintura um mundo novo que irá cultivar (em vez de destruir) os efeitos ilusionistas peculiares, engendrados espontaneamente por nosso sistema visual. Ao propulsionar tal busca até a produção dos “penetráveis”, ele consegue restabelecer o vínculo, quebrado pela aplicação sistemática da perspectiva desde a Renascença, entre o mundo enquanto ordem geometricamente estruturada e a experiência sensível dos espaços construídos pela luz.

Na longa e complexa história dessa reapropriação sensível da ordem geométrica, Joseph Albers grudara-se à forma do quadrado porque este representava, para ele, a forma a-simbólica por excelência, aquela a partir da qual, desligado de qualquer representação, era possível para o artista fazer experimentos nas condições perfeitas. Com o quadrado, as relações entre as cores encontravam-se em situação experimental, tornava-se possível aplicar-lhes um protocolo de laboratório. Com Albers e alguns outros, as pesquisas desenvolvidas no âmbito da Bauhaus e da estética industrial, nas décadas de 1920 e 30, haviam transposto o Atlântico para abrir novos territórios em todo o continente americano.

Jaildo Marinho inscreve-se na filial brasileira dessa tradição que, nas décadas de 1950 e 60, ganhou uma importância tanto mais dominante na medida em que ela encontrou, no país, um contexto favorável no aspecto tanto industrial, quanto político. Já, em 1939, no momento da exposição organizada por Flávio de Carvalho para o III Salão de Maio, este declara em um Manifesto: “A arte abstrata, safando-se do inconsciente ancestral, libertando-se do narcisismo da representação figurada, da sujeira e da selvageria do homem, introduz no mundo plástico um aspecto higiênico: a linha livre e a cor pura, quantidades pertencentes ao mundo de raciocínio puro, a um mundo não subjetivo que tende ao neutro”. Em seguida, cita Mondrian: “O tempo é um processo de intensificação, uma evolução do indivíduo para o universal, do subjetivo para o objetivo”¹.

Deve-se, portanto, considerar a exposição proposta por Jaildo Marinho como o resultado de uma dupla reflexão a partir de uma releitura da tradição inaugurada pela obra de Mondrian – desenvolvida por Jesús Soto, de um lado, e, do outro, estabelecida solidamente na linhagem do concretismo e, em seguida, do neoconcretismo brasileiro, que vai de Flávio de Carvalho até Hélio Oiticica, passando por Waldemar Cordeiro e muitos outros a quem a Bienal de São Paulo ofereceu uma importante vitrine.

A geração de artistas da qual Jaildo faz parte pensa imediatamente – poderíamos dizer, a priori – em termos de espaço perceptivo e, portanto, também de espaço de museu. A obra deixa de ser considerada em sua autonomia de objeto confinado em si mesmo porque ele “representa” um mundo existente em outro lugar: ela pertence de imediato, assim como é evidenciado por esta mostra, a um conjunto em que cada parte traz a sua contribuição e no contexto do qual ela reage a todas as outras. É portanto, em primeiro lugar, no plano global da exposição que cada obra singular adquire seu sentido, na exata medida em que ela constitui, como TODO, a moldura em que cada fragmento adquire seu valor.

Com certeza, nada há de absolutamente novo nesse reconhecimento da função de quadro ligada ao espaço da exposição; um construtivista, tal como El Lissitzky, já havia feito essa demonstração. Em um espírito um tanto diferente, Constantin Brancusi tinha feito de seu ateliê o primeiro espaço de exposição para as suas obras: aí, é que ele dispunha, umas em relação às outras, as suas esculturas; que ele as deslocava, servindo-se de uma e, em seguida, de outra como base para determinada escultura, a fim de avaliar os efeitos ópticos de tais mudanças. Essa busca era empreendida com tal rigor que Brancusi tinha acabado por instalar sistemas de cortinas, permitindo-lhe fazer variar a luz que iluminava – e, por conseguinte, transformava – as suas peças. Para fixar essas infindáveis variações é que Brancusi, com a ajuda de Man Ray, dedicou-se à fotografia a fim de guardar esses instantes de graça na permanência de um clichê fotográfico. Era assim que ele colocava em ação o pensamento das relações espaciais, das proporções de valor e das oposições de formas. Essa preocupação pode ser encontrada na série de esculturas de Jaildo Marinho que ostentam o título “Palette”. A relação habitual entre a escultura e a sua base, concebida como elemento adventício destinado simplesmente a situar a escultura no espaço, é questionada aqui pelo uso do mármore na fabricação do mais comum dos suportes: uma paleta de transporte. A nobreza do mármore contradiz a trivialidade do objeto emblemático do mundo da logística. A relação da escultura com a sua base cria uma tensão que torna mais complexa a dimensão simbólica do objeto.

Na exposição “Cristalização”, esse valor do quadro e o seu poder de significação encontram-se fortalecidos pela presença redundante – como se tratasse de uma repetição abismal – da forma “moldura” que aparece em cada uma das pinturas que circundam as outras peças. Jaildo Marinho dá assim ao conjunto um emblema que é repetido ao infinito nas paredes, revelando o esquema geral a partir do qual toda a exposição é construída.

Nesse dispositivo, há manifestamente uma reivindicação asseverada da repetição, do efeito de espelho e de uma estrutura abismal enquanto princípios composicionais. Mesmo que estejamos acostumados, na música, aos procedimentos repetitivos da arte da fuga de João Sebastião Bach, o desnudamento do processo repetitivo esbarra, no entanto, quase sempre, em certa resistência espontânea por parte de nossa sensibilidade. Nosso gosto instintivo parece ter sido condicionado pelo privilégio do único, pelo que poderia inclusive ser designado como a ideologia do único, construída pela tradição romântica da afirmação do ego. Essa tendência em limitar-se a reter da produção artística apenas o que afirma a expressão de uma singularidade tinha sido, na época, uma resposta ao mundo desencantado, oriundo da física de Newton; daí, essa prevenção contra os processos repetitivos, além da sensação de sermos agredidos por seu aspecto mecânico.

Já saímos, no entanto, da era da reação contra o antimaquinismo; mesmo que tenhamos consciência de que a música funciona constitutivamente a partir de processos repetitivos e redundantes, mesmo que estejamos cientes de que o seu ciclo acaba muitas vezes por um retorno “da capo”, ainda assim escapamos dificilmente dessa desconfiança no que se refere à repetição. Quando, na década de 1960, criações musicais “com estruturas repetitivas”, tais como as obras de Terry Riley ou de Philip Glass, investiram nossos ouvidos, muitos tiveram a sensação de serem vítimas de uma agressão. No mesmo momento, uma reação comparável apareceu no campo das artes quando Andy Warhol, sistematizando o uso da fotocópia na pintura, deu à colagem uma nova dimensão simbólica: ele irá conectá-la não à representação, mas ao poder da repetição.

Ora, ao colocar a sua exposição sob o emblema da cristalização, Jaildo Marinho impõe-se a si mesmo – e impõe a seu espectador – a evidência dinâmica da repetição. Cada uma das superfícies que se encontram no centro das telas expostas funciona como um espelho que reflete o lugar da exposição como pura estrutura repetitiva. Ao retomar a terminologia específica dos cristalógrafos, seria possível afirmar que a exposição funciona como uma macla¹, um conglomerado de vários cristais que constroem uma riqueza de simetrias infinitamente complexa, segundo os planos, os eixos e os centros em torno dos quais se organizam esses jogos de espelho e essas simetrias. Por mínimas que elas possam ser, as superfícies, as linhas e os volumes produzem efeitos de estrutura potencialmente infinitos.

Ao conferir uma importância particular à luz e às suas variações em “Cristalização”, Jaildo Marinho reposiciona o espectador e a sua sensibilidade no âmago do processo artístico. A pulsação da luz no geodo assinala o face a face entre o tempo da visita, sensível e movente, que ritma a existência do observador, por um lado, e, por outro, o tempo mineral secular que arbitra a fabricação do cristal. A tensão entre essas duas temporalidades arromba aqui as portas misteriosas do incomensurável. Ela oferece uma experiência estética às séries harmônicas infinitas. A vida – a pequena diferença que nos faz existir em sua fragilidade buliçosa simbolizada pelo fluxo colorido da luz – é confrontada com o rigor cristalino das telas, dos volumes e das maclas. O poder enigmático desse dispositivo submerge o espectador no âmago de uma experiência sensível em que se misturam e colidem os jogos incertos da memória que enfrentam a insuperável fixidez do tempo mineral. Eis uma estética única que enfatiza o valor inestimável da exposição de Jaildo Marinho. |. Jacques Leenhardt

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