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06/06/2019 - 07:55

A lama de Brumadinho é o nosso divã

O rompimento da barragem da Vale em Brumadinho completou em 25/05 quatro meses. O incidente materializou um risco imposto à população local de Brumadinho pelo conjunto da sociedade brasileira, que escolhera um modelo econômico que exige a exploração econômica da mineração para sobreviver. As vítimas do rompimento da barragem jamais aceitaram o risco de sofrer os seus efeitos mortificantes.

O incidente de Brumadinho representa a falência do complexo sistema formulado para gerir os riscos decorrentes da mineração no Brasil. Sofisticado, ele envolve o cumprimento de uma série de regras de ordem técnica, assim como a apresentação de laudos de especialistas, de fiscalizações rotineiras por agentes do Estado, de avaliações por instituições independentes e do controle externo pelo Poder Judiciário. O sistema preconiza estratégias atualizadas de enforcement regulatório, assim como legitima o desempenho de regulação e governança por atores privados. Apesar de as principais características do sistema sugerirem a sua funcionalidade, ele não foi capaz de impedir, e muito menos de mitigar, os danos decorrentes do rompimento da barragem. O que deu errado?

Propõem-se três fatores explicativos, sem o compromisso de exaurimento das causas de tamanho fracasso. As sociedades contemporâneas enfrentam uma realidade na qual os riscos estão em constante complexificação. O primeiro fator explicativo para o incidente de Brumadinho dialoga justamente com a deficiência do Estado em responder simultaneamente a essa profusão de riscos emergentes. Como o Estado muitas vezes é incapaz de gerir todos os riscos sozinho, muitas vezes somos convidados a auxiliá-lo nessa tarefa. Se, por um lado, o convite à participação fortalece o civismo e o senso de pertencimento à sociedade, por outro, ao convocar a todos a auxiliá-lo, o Estado atesta sua verdadeira incapacidade gerencial.

O segundo fator explicativo diz respeito às limitações na capacidade de apuração da responsabilidade individual dos envolvidos e na sua punição. O igualmente traumático rompimento da barragem de Fundão, no município de Mariana (MG), segue impune. Para além da melhoria qualitativa do tratamento penal a esses episódios, entre as alternativas disponíveis para a melhoria do atual quadro de gestão de riscos inerentes à atividade mineradora estão: 1) o aprimoramento dos programas de integridade das mineradoras; 2) a criação de ações que conjuguem entidades da sociedade civil organizada e autoridades na busca pelo conhecimento dos riscos e das consequências de sua materialização; e 3) a consolidação do monitoramento social e permanente da atividade mineradora.

O terceiro fator considera o fenômeno da financeirização – a crescente influência da lógica financeira sobre as decisões de gestão das companhias – como explicativo da opção de empresas da estatura da Vale pela adoção de técnicas de armazenamento de rejeitos que, embora controversos por apresentem elevados riscos sociais e ambientais, são financeiramente mais eficientes, a despeito de já existirem alternativas menos arriscadas, embora mais caras.

Considerando que no Brasil as empresas insistem em tratar famílias atingidas pelos riscos de suas atividades de maneira utilitária, o incidente de Brumadinho seria mais uma oportunidade de avançar em propostas de criação de fundos com o objetivo de garantir proteção financeira aos grupos populacionais sujeitos à materialização de riscos socialmente impostos. Esses fundos poderiam ser alimentados pelas próprias empresas em favor da coletividade de indivíduos, e representariam uma conquista social importante.

Como bem observa Eliane Brum, não há metáforas no Brasil, apenas a literalidade da lama. Contudo, para a sociedade brasileira, ao inundar-se na lama, ao menos uma metáfora faria sentido: a da tragédia de Brumadinho como sendo um divã – uma verdadeira oportunidade de refletir e assumir a responsabilidade pelas nossas escolhas. Se optamos por um sistema econômico e modelo de exploração intensivo dos recursos naturais de Pindorama, pois que o façamos de modo a mitigar os riscos dessa atividade sobre as populações locais, sobre a fauna e a flora que lutam para sobreviver. A lama mostra o destino dessa jornada que apenas foca nos benefícios, sem concentrar-se nos prejuízos de nossas escolhas. Deitemo-nos todos na lama que é o nosso divã e façamos esta reflexão. E assim, a lembrar do entoar da flâmula inconfidente, quem sabe, libertemo-nos dela, ainda que tardiamente.

. Por: Vítor Boaventura, advogado, mestre em Regulação pela London School of Economics and Political Science (Reino Unido), membro do Instituto Brasileiro de Direito do Seguro (IBDS) e sócio de ETAD – Ernesto Tzirulnik Advocacia.

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