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14/04/2020 - 07:53

A superpotência que encolheu e a construção do pós-pandemia


Nas discussões sobre ordem internacional a acomodação do princípio de soberania nacional com as noções de justiça e de equidade ocupa lugar de irrefutável importância e, em contexto de grave crise internacional como a que vivemos são os princípios de cooperação e solidariedade internacionais que se alçam ao centro da cena evidenciando a limitação e pequenez de algumas visões egoístas e simplistas de mundo.

Em abril de 1998, o intelectual mexicano Octavio Paz, prêmio Nobel de literatura de 1990, teve publicado seu artigo “EUA toleram vícios da liberdade, mas não da tirania” que começa com o parágrafo que reproduzo abaixo.

“No começo, era apenas um segredo sussurrado aos ouvidos por algumas pessoas bem informadas. Logo depois os entendidos começaram a publicar sábios ensaios em revistas especializadas e a pronunciar conferências nas universidades. Hoje o assunto é debatido em mesas-redondas de televisão, em artigos e pesquisas publicados em revistas e jornais, em coquetéis e jantares, nos bares da moda. Em menos de um ano os norte-americanos descobriram que "estão em decadência".

Poucas linhas depois Paz emenda “Os espíritos religiosos tendem a considerá-la um castigo do céu e os pragmáticos inveterados uma falha mecânica reparável. A maioria recebeu a notícia com um frenesi ambíguo, uma estranha mistura de horror e exaltação e um curioso sentimento de alívio: enfim!”.

Desde a publicação do artigo de Paz vinte e dois anos se passaram, e nestes, alguns acontecimentos marcantes como o atentado terrorista ao World Trade Center em setembro de 2001 e as respostas desastrosas – para o mundo e para a imagem dos EUA – dadas pelo governo Bush através das guerras do Afeganistão (2001) e Iraque (2003) repuseram a questão sobre a decadência da superpotência.

Dezenas de livros já foram publicados, em diversos idiomas, problematizando sobre essa decadência e, ainda mais importante, sobre o vazio deixado por ela, ou ainda, sobre quem ocuparia esse lugar. O historiador britânico Paul Kennedy publicou em 1988 seu “Ascensão e queda das grandes potências” cobrindo o período dos últimos cinco séculos, desde a investida dos Habsburgos para dominar o mundo até o fim da bipolaridade da Guerra Fria, investigando os processos que levaram a mudanças na ordem mundial. Já o historiador francês Jean-Baptiste Duroselle, com “Todo império perecerá”, de 1992, valorizando os recursos da disciplina de História das Relações Internacionais investiga as transições do poder, a existência e a queda dos impérios como próprias das “regularidades humanas”, cujo movimento se dá no jogo tenso entre eficiência (da conquista, do poder) e dignidade humana.

Em textos menos densos e mais recentes à questão da decadência do poder dos EUA agregou-se a da ascensão da China e de outros países emergentes no tabuleiro do poder internacional. Em “O mundo pós-americano” o indiano Fareed Zakaria reúne um conjunto extenso de evidências da “ascensão do resto do mundo” e expõe os contornos de uma nova ordem mundial multipolar.

Tendo também em perspectiva a ascensão de países emergentes como China e Índia, o cientista político Oliver Stuenkel nascido na Alemanha e professor de Relações Internacionais no Brasil analisa as consequências dessa ascensão de novas potências na balança do poder global problematizando sobre um “possível fim da hegemonia ocidental”. Em seu livro “O mundo pós-ocidental”, de 2018, logo na introdução recupera a tese do excepcionalismo norte-americano e ao citar o ex-secretário de estado e teórico das relações internacionais Henry Kissinger, nos leva à reflexão sobre o papel dos EUA na configuração da ordem internacional do século XX que se deu pela ação política-econômica-militar e, ao mesmo tempo, pelo desenvolvimento e conformação dos instrumentos intelectuais para a normatização e interpretação das referidas relações. Escreveu Stuenkel “Os Estados Unidos desempenharam papel fundamental na construção da ordem pós-Segunda Guerra Mundial, e Henry Kissinger está certo ao argumentar que nenhum outro país teria tido o idealismo e os recursos necessários para lidar com uma gama tão ampla de desafios, nem a capacidade de ser bem sucedido em tantos deles.”

E é justamente Henry Kissinger quem, diante das incertezas geradas pela atual pandemia do coronavírus, trouxe para a discussão no último dia 3, através de um contundente artigo publicado no Wall Street Journal com o título “The Coronavírus Pandemic Will Forever Alter the World Order” o debate sobre mudanças na ordem mundial. Nele, avalia a crise em curso como inédita e de extrema gravidade e traça um cenário pós-pandemia onde se destacam três principais âmbitos de vulnerabilidade: i) a capacidade de governos em manter a solidariedade social; ii) a relação entre as sociedades e iii) a manutenção da paz e estabilidade internacionais.

Kissinger explicita sua apreensão apontando o risco de que “Quando a pandemia do Covid-19 terminar, as instituições de muitos países serão percebidas como tendo fracassado.”

Sem surpreender os leitores conhecedores de seu currículo e iniciados em suas ideias, o chamado “oráculo da política americana” após avaliar generosamente que “a administração dos EUA fez um trabalho sólido para evitar uma catástrofe imediata” conclama que “o esforço de crise, por mais vasto e necessário, não deve impedir a tarefa urgente de lançar um empreendimento paralelo para a transição à ordem pós-coronavírus”.

Embora reconhecendo a necessidade de “programas colaborativos globais” sua narrativa sobre a mudança da ordem mundial evidencia sua visão sobre o papel dos EUA nela ao propor que “tirando lições do desenvolvimento do Plano Marshall e do Projeto Manhattan, os EUA são obrigados a realizar um grande esforço [...]”.

As ideias expostas por Kissinger – um chauvinista de potência, como diria um saudoso professor que tive de relações internacionais – deixam uma impressão de incompreensão ou recusa em ver aquilo que pelo menos nas duas últimas décadas vem se evidenciando, e que os autores citados nos parágrafos acima vem estudando e debatendo, que é a perda relativa de poder dos EUA nas relações internacionais.

Kissinger mostra perceber que internamente o país se encontra dividido e com um governo com dificuldades para “manter a confiança do público”, situação que o cientista político norte-americano Robert Putnam em discurso no Senado dos EUA em maio de 2017 já alertava ao apresentar dados de pesquisa que demonstrava os baixos níveis de solidariedade social e do que chama de “capital social” na sociedade norte-americana.

Para analistas já se tornou rotina registrar e avaliar os danos da aposta de Trump na divisão do país e na tática do confronto permanente com diversas instituições da sociedade civil organizada e, na arena internacional, a egoísta orientação do América first, conduta desagregadora que afastou aliados e através de sabotagens a instituições e processos multilaterais de cooperação e negociação minou a governança global.

A estratégia do soft power (poder suave) que tanto contribuiu para a conquista de capital político aos EUA em diferentes momentos da história foi abandonada por Trump enquanto outros líderes como o presidente chinês Xi Jimping tem se empenhado em explorá-la combinando com smart power, a estratégia teorizada por Joseph Nye e Suzanne Nossel orientada pela noção de “poder inteligente”.

Que as nações busquem através de sua política externa o atingimento de seus interesses não é em si um problema, mas é fundamental que nesse processo sejam reconhecidos os interesses e necessidades dos outros, para que um resultado de ganha-ganha contribua para o desenvolvimento das partes numa compreensão de mundo interligado e interdependente. Como diria o jovem historiador holandês Rutger Bregman, essa é uma utopia para realistas.

A combinação de crise social, econômica e política que deve caracterizar o pós-pandemia colocará o mundo diante de uma de suas mais difíceis fases.

Já se movimentam aqueles que invocarão diante dos escombros da pandemia as armas do nacionalismo, do autoritarismo e da xenofobia na disputa da confiança de cidadãos em diferentes nações, especialmente naquelas onde os danos da pandemia foram mais profundos e onde essas forças antidemocráticas já empreendiam suas ações.

Para que o futuro seja melhor que o passado tais proposições deverão ser derrotadas por ações políticas corajosas e eficientes de governos e pela participação e perseverança daqueles que de boa-fé buscam um mundo com mais justiça e fraternidade, onde as melhores virtudes, principalmente dos jovens, são orientadas para a construção do novo, de forma aberta e inclusiva.

A cooperação internacional entre os países será essencial para a superação de problemas em escalas nacional e global e servirá ao mesmo tempo como resposta às forças que se orientam por ideias anacrônicas e sectárias, ignorantes e impermeáveis aos ensinamentos da história.

Esse futuro que já está sendo construído por nossas ações no presente não perdoará as omissões.

. Por: Arnaldo Francisco Cardoso, professor e pesquisador da Universidade Presbiteriana Mackenzie.

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