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05/05/2020 - 09:44

Os paradoxos da aceleração do progresso técnico


Palavras como lockdown, catástrofe, caos se impuseram em nossas comunicações e ao nosso imaginário desde que o vírus Sars-Cov-2 ultrapassou as fronteiras da cidade chinesa de Wuhan e passou a infectar pessoas em diferentes países fazendo com que em onze de março, quando se registrava 118 mil infecções em 114 países e 4291 mortes a OMS decretasse pandemia. Mas se essa pandemia surpreendeu o mundo pela velocidade de contágio e letalidade provocando crises com características inéditas e revelando o despreparo para seu enfrentamento, o alerta sobre a possibilidade desse tipo de acontecimento e da necessidade de estudos e ações preventivas condizentes com a ameaça já vinham sendo emitidos por estudiosos como Paul Virilio, ao menos desde a década de 1980.

Os fluxos cada vez mais intensos e velozes de pessoas pelo mundo, facilitados por avanços tecnológicos nos meios de transportes e motivados especialmente pela internacionalização de empresas que operam em cadeias globais e que mantém em permanente deslocamento seus operadores e seus produtos, imprimiram também maior velocidade e escala aos seus equivalentes destrutivos. Paul Virilio entendia as catástrofes como consequências do progresso técnico. Se a lógica da velocidade se firmou como vetor de poder a pandemia do coronavírus impôs como desafio às nações a capacidade de parar. Paul Virilio ao longo de anos de estudos e intervenções públicas alertou para essa necessidade de parar e ao seu caráter de decisão política.

Filho de pai italiano e mãe francesa, Paul Virilio foi arquiteto, filósofo e escritor. Foi professor e diretor da Escola de Arquitetura de Paris e, sempre empreendendo novos estudos interdisciplinares, na Sorbonne foi aluno do sociólogo Raymond Aron e colaborou em trabalhos de renomados artistas plásticos e profissionais do cinema. Morreu em 10 de setembro de 2018, aos 86 anos e deixou uma extensa e fértil obra ainda pouco explorada.

Neste momento em que vivemos o acidente integral previsto por Paul Virilio me parece oportuno invocar algumas das ideias desse inquieto intelectual tão preocupado com a depreciação da vida humana e que buscava falar aos jovens, os agentes responsáveis pelo futuro.

Desta vez um vírus e não o colapso de recursos naturais ou humanos, ou a catástrofe tecnológica – o acidente total – que frequentou os exemplos dados por Virilio de potenciais consequências da aceleração do mundo, fez o mundo parar. Fui apresentado ao pensamento de Paul Virilio pelas mãos competentes e generosas do professor Miguel Chaia em aulas na Faculdade de Ciências Sociais da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo na segunda metade da década de 1990. Essas aulas assim como outras de Chaia trouxeram para a reflexão instigantes autores reunidos em programas construídos no melhor exercício do artesanato intelectual, naquela transgressão do convencional que impulsiona a pensar, no tempo que lhe é requerido. Minha primeira leitura de Virilio foi o livro A máquina de visão cuja primeira edição em português é de 1994. O livro traz a reflexão sobre mais uma aceleração no progresso da técnica, do modo de produção e reprodução da vida material e social, que levou a mudanças nas formas de pensar e de existir, tanto no plano individual quanto coletivo. Nele o autor desenvolve uma “filosofia contemporânea da lógica da velocidade”.

Problematizando o presente com um olhar para o futuro, Virilio em A máquina da visão e outros de seus livros manifestava uma inquietação e reafirmava a necessidade de um pensamento crítico. Diante das pesquisas na trilha da inteligência artificial alertava através de sua escrita sobre a complexidade e impactos dessas tecnologias para além das instâncias da produção material da sociedade, “no momento em que se prepara a automação da percepção, a inovação de uma visão artificial, a delegação a uma máquina da análise da realidade objetiva, seria oportuno voltar à natureza da imagem virtual, imagerie sem suporte aparente, sem outra persistência do que a da memória mental ou instrumental”.

Já em Velocidade e Política (1996) o leitor encontra atravessando todo o livro a preocupação com o “encolhimento do mundo” que por meio da velocidade aproximou todos os lugares e instaurou um “estado de emergência”.

Expõe também que a midiatização das instâncias da vida tem como um de seus efeitos a produção de antissociedade, através de regimes políticos apoiados em estruturas info-comunicacionais que exploram o medo e ao mesmo tempo despolitizam o espaço público da cidadania.

De forma visionária – que nos angustia hoje pelo acerto – apresentou em seu livro de vinte e cinco anos atrás como esse efeito de antissociedade se coaduna com o medo, a desconfiança, o denuncismo e um estado de alerta e urgência, instalando um ambiente inóspito para o desenvolvimento da democracia e fértil para todas as formas de totalitarismo.

Focando atenção nos novos aparatos tecnológicos, expõe os paradoxos do tempo acelerado que podem ser percebidos pelas luzes e velocidade das telas dos tablets e smartphones que cegaram seus usuários para a vida, e cujo excesso de informação gera desinformação. A velocidade das mídias se insurge contra o tempo da reflexão e da crítica.

Falando aos jovens, chamou a atenção para o risco contido nas promessas da velocidade pois não asseguram que se chegue a algum lugar. Alertou que nesse mundo encolhido podemos estar sempre retornando ao mesmo lugar de partida, com bagagens vazias, pois o tempo da experiência significativa é outro.

No livro “Estética da desaparição” (2015) encontra-se a discussão sobre a nociva neutralização da interioridade psicológica, das emoções, decorrente dos processos de aceleração e racionalização do que é subjetivo.

Considerando ilusão o que a tela do computador oferece, Virilio denuncia que a informação divorciada da sensação projeta no horizonte o deserto do mundo, de indivíduos separados da sociedade, embriagados de um eu narcísico e alienados de si, numa vida on-line composta por telas e emoções reduzidas a troca de emojis.

Em uma entrevista ao jornal francês "Le Monde", publicada em 18 de outubro de 2008, em meio ao pânico provocado pelo crash financeiro iniciado nos EUA e que se expandiria pelo mundo com consequências desestabilizadoras, Virilio reforçou sua tese da relação entre progresso técnico e catástrofes, além de erguer mais uma vez sua voz lembrando que somente através da política é que o abismo poderá ser evitado.

Logo no início da entrevista Paul Virilio trouxe à memória o acidente nuclear da usina de Three Mile Island ocorrido em março de 1979 na Pensilvania/EUA, quando o derretimento do gerador de uma unidade da usina elevou a radioatividade de seu entorno a um patamar oito vezes maior que o letal. Chamou esse acidente de original, por ser produzido pelo homem, como outros que o antecederam e o sucederiam. Essa Ideia exposta por Virilio se integra bem à formulação da filósofa alemã Hannah Arendt de que “O progresso e a catástrofe são as duas faces de uma mesma moeda”.

Na sequência Virilio citou o acidente nuclear de Chernobyl como um acidente de escala global que abriu uma nova fase de acidentes nessa escala, como os atentados de 11 de setembro e o crash de 2008.

Na entrevista Virilio critica a ineficácia das análises pós-acidentes por não se darem sob uma compreensão da “economia política da velocidade”, da aceleração do progresso da técnica. Propôs a atualização da formulação “tempo é dinheiro” para “velocidade é poder”, tendo como exemplo disso a dinâmica das bolsas de valores e da competição frenética nos mercados. Avaliou que essa aceleração do tempo, do real, instaurou o instantaneísmo que impede o planejamento e a própria concepção de segurança, da responsabilidade com o futuro. A atual crise sanitária mundial está confirmando isso ao explicitar a debilidade de sistemas de saúde e ausência de protocolos de segurança até mesmo – ou justamente – na nação mais rica do planeta.

No final da entrevista em que tratou de catástrofes e caos Virilio fez questão de frisar que não se considera um catastrofista e insistiu na importância de compreender esses acidentes produzidos por nós mesmos, nesse tempo acelerado que colonizou o homem e empobreceu sua vida. Finalizou a entrevista com a seguinte declaração “Diante do medo absoluto, eu oponho a esperança absoluta.”

. Por: Arnaldo Cardoso, professor e pesquisador da Universidade Presbiteriana Mackenzie.

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