Página Inicial
PORTAL MÍDIA KIT BOLETIM TV FATOR BRASIL PageRank
Busca: OK
CANAIS

26/09/2020 - 04:52

Tecnologia e Sociedade: “O Dilema das Redes”


As redes sociais como uma das expressões da acelerada evolução das tecnologias digitais, ao se inserirem na rotina da vida de bilhões de pessoas pelo mundo, desde algum tempo vem sendo objeto de discussão em meios acadêmicos e políticos, dado ao seu poder de influência sobre valores e comportamentos.

O recente lançamento pela Netflix do documentário “O Dilema das Redes” (The Social Dilemma) que reúne informações e depoimentos de especialistas em tecnologia do Vale do Silício e ex-executivos de empresas como Google, Facebook, Twitter, Instagram e Pinterest, trouxe ao centro do debate as chamadas Five Big Techs e seus modelos de negócios.

Um dos entrevistados no documentário é Tristan Harris, que foi especialista em Ética de Design no Google. Ele nos coloca diante da seguinte constatação "se você não está pagando pelo produto, você é o produto". Reforçando essa ideia, Jaron Lanier, especialista em realidade virtual, acrescenta que a mudança em comportamentos e percepções é o produto ofertado pelas big techs a corporações de diferentes segmentos econômicos.

A publicidade e o marketing passaram a se servir desses recursos tecnológicos, do potencial dos algoritmos, para conceber campanhas e orientar suas estratégias visando a promoção de produtos, serviços e marcas. Esse uso comercial de um inédito e rico arsenal de informações individuais trouxe questionamentos éticos e legais sobre proteção de dados e direito à privacidade.

É bem sabido que a tecnologia nunca é neutra, e ganha suas mais nítidas formas através de seu uso. Nos anos 2000 a tecnologia digital passou a ser usada pelo Estado com o objetivo de aproximar governos de seus cidadãos por meio de iniciativas de e-governo, com criação de portais oferecendo serviços e agilizando processos nas áreas fiscais, de saúde, comércio exterior, entre outras.

Em 2006 integrei um grupo de pesquisadores liderado pela professora Vera Chaia no âmbito do Programa de Pós-Graduação da PUC-SP para a realização da pesquisa “As novas tecnologias de informação na ação política no Brasil e na Espanha”, com colaboração de pesquisadores da Universidad Rey Juan Carlos II, de Madri. Tal projeto era pioneiro, daqueles que se inserem nas chamadas fronteiras do conhecimento, dado ao fato de haver pouca pesquisa na área e ser, na época, uma inovação o próprio uso de tais tecnologias no processo político brasileiro. Além das iniciativas de e-governo analisávamos a estruturação de informações em sites dos principais partidos políticos brasileiros e o início da interação com filiados e demais eleitores através de blogs. Via-se uma possibilidade de melhorar a participação política dos cidadãos e uma melhor prestação de contas dos mandatos de parlamentares eleitos.

Um pouco antes, em 2004 um acontecimento político singular na Espanha deu mostras das potencialidades das novas tecnologias digitais na ação política.

O atentado a bomba a quatro trens da periferia de Madri em 11 de março de 2004, que matou 191 pessoas e feriu quase 2 mil, às vésperas de eleição nacional cujas pesquisas indicavam folgada vitória do candidato do então primeiro ministro José Maria Aznar (PP) provocou além da comoção nacional uma reviravolta política que passou a ser tratada como o 14-M e no qual as novas tecnologias tiveram papel de destaque.

A oportunista tentativa de manipulação da opinião pública pela equipe de Aznar usando veículos tradicionais de imprensa (jornais e canais de TV) atribuindo precipitadamente a autoria do atentado ao grupo separatista basco ETA, provocou a revolta dos espanhóis e nos dias que se seguiram viu-se uma onda de manifestações, com as pessoas se trocando mensagens de texto por telefones moveis, culminando no dia 13 com mais de 2,5 milhões de pessoas nas ruas e praças de Madri e outras 11 milhões em todo o país.

O resultado foi a vitória do candidato oposicionista José Luís Zapatero (PSOE), com presença recorde de eleitores nas urnas.

De lá para cá muita coisa aconteceu, mas se no caso espanhol do 14-M viu-se o potencial das novas tecnologias na convocação e mobilização da cidadania contra os abusos do poder, a percepção que hoje predomina no mundo é a do descomunal poder dos algoritmos usados para a conformação de comportamentos e alteração de padrões de relações político-sociais a partir de desígnios nada transparentes de grupos econômicos e políticos descomprometidos com a ética e valores democráticos. Um dos casos emblemáticos desse estado de coisas foi a campanha em 2016 para o referendo popular no Reino Unido que culminou com a vitória da chapa “Vote Leave” conduzida pelo estrategista Dominic Cummings que utilizou dos algoritmos e de táticas de apelo emocional apoiadas em análises estatísticas aleatórias e na exploração de temas sensíveis. O uso de perfis dos usuários de redes sociais foi um recurso decisivo para o bombardeio de mensagens customizadas aos eleitores, invocando inclusive ressentimentos e rancores.

Likes, cliques e compartilhamentos se tornaram fontes para a adaptação de mensagens segmentadas em tempo real. Só na última semana da campanha para o referendo a equipe de Cummings disparou um bilhão de mensagens destinadas a eleitores.

Ficou conhecida a decisiva assessoria da obscura empresa canadense de tecnologia AggregateIQ na campanha, bem como a entrada da Cambridge Analytica (especializada em traçar perfis psicológicos e buscar eleitores).

Se hoje todos sabem quem venceu o referendo no Reino Unido ainda são poucos os que sabem como isso aconteceu. O ex Primeiro Ministro inglês David Cameron que após o resultado do referendo renunciou, referiu-se ao estrategista Dominic Cummings, numa entrevista, como um “sociopata de carreira”. Esse estrategista depois se tornou assessor especial de Boris Johnson, atual Primeiro Ministro britânico.

No mesmo ano de 2016 a polarizada campanha que levou Donald Trump à presidência dos Estados Unidos pôs em operação as mesmas estratégias e recursos utilizados no referendo britânico, mas desta vez sob o comando do agitador Steve Bannon. Outra vez a Cambridge Analytica (utilizando dados de usuários do Facebook) se fez presente, desencadeando posteriormente investigações e processos. Na campanha norte-americana de 2016 a novidade ficou por conta de serviços de hackers russos contratados para a produção de fake news, teorias conspiratórias e campanhas de difamação contra opositores.

O documentário “O Dilema das Redes Sociais” é bem-vindo dado ao seu potencial alcance e repercussão, mas muitas das questões abordadas no documentário já tinham sido expostas em obras como o livro “Os engenheiros do caos” (Ed. Vestígio, 2019) do cientista político ítalo-suíço Giuliano Da Empoli.

A pesquisa realizada por Da Empoli apresenta “como as fake news, as teorias da conspiração e os algoritmos estão sendo utilizados para disseminar ódio, medo e influenciar eleições”. No capítulo “Os ‘físicos’ e os dados” o autor avalia que “em termos políticos, a chegada do Big Data poderia ser comparada à invenção do microscópio. [...] o objetivo passa a ser identificar os temas que contam para cada um, e em seguida explorá-lo através de uma campanha de comunicação individualizada. [...] No novo mundo, a política é centrífuga. Não se trata mais de unir eleitores em torno do denominador comum, mas, ao contrário, de inflamar as paixões do maior número possível de grupelhos para, em seguida, adicioná-los – mesmo à revelia deles”.

Diante das questões apresentadas pelo documentário “O Dilema das Redes” e de livros como “Os engenheiros do caos” um alerta que parece inescapável é o de que o enfrentamento desses problemas demandará uma sensibilidade e responsabilidade para além da de usuários. Não bastará que cada um, conscientizado dos problemas, faça um “uso moderado” das tecnologias. Os danos produzidos não são apenas a usuários individuais, mas sim à sociedade como um todo, às formas de sociabilidade e à cidadania. Uma sociedade é mais que a soma de indivíduos.

Para que possamos continuar no comando de nossa história, precisamos manter a clareza diante da tecnologia, de quem é o criador e quem é a criatura. E sobretudo não podemos nos esquivar da responsabilidade de responder com ações à pergunta: para onde queremos ir?

As gerações presentes e as futuras dependem dessa resposta e nossos jovens tem uma importante tarefa pela frente.

. Por: Arnaldo Francisco Cardoso, professor e pesquisador da Universidade Presbiteriana Mackenzie.

Enviar Imprimir


© Copyright 2006 - 2024 Fator Brasil. Todos os direitos reservados.
Desenvolvido por Tribeira