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16/10/2021 - 08:34

Transtorno bipolar e trabalho


É quase instintivo, sempre associamos o transtorno bipolar, como doença caracterizada que tem como o mais frequente as mudanças repentinas de humor. Mania e depressão ou vice versa. Mas não se pode menosprezar que essa patologia altera significativamente o nível de energia das pessoas, retirando-lhe a capacidade plena para o trabalho.

A justiça, por muitos anos, mesmo diante de grandes naufrágios humanos seguia insistindo que a bipolaridade não tinha qualquer ligação com o trabalho e conseguir um benefício previdenciário que garantisse estabilidade, era quase impossível. Assim, como navio que afunda, milhares de trabalhadores naufragaram na carreira e perderam o emprego, quando não podiam contar com a compreensão dos patrões. A regra era geral: mão de obra tem que ser sã, seja do ponto físico e mental e licença é diminuição de receita e aumento de custos.

Um novo olhar dos tribunais provocou avanços na compreensão desse quadro e sua relação com o trabalho. Decisões recentes extremamente sensíveis e humanas dos tribunais trabalhistas brasileiros revelam uma evolução na compreensão de que o ambiente laborativo, pode sim, contribuir para o agravamento desta patologia. Assim, a bipolaridade passou para a agenda das doenças ligadas ao trabalho, pela relação de concausalidade. Isso quer dizer, que ainda que não seja causa determinante, o trabalho gatilha crises e agrava a doença. Ainda que a doença seja de origem genética ou não causada unicamente, o trabalho pode ser sim um concausador.

Um ambiente inóspito, rodeado de pressão, com imposição de condições desfavoráveis permeado por violência psicológica, metas, monitoramento de produção, assédio, é extremamente perturbador para quem tem o transtorno bipolar. Chega ser um verdadeiro desafio, conseguir dominar os sintomas da patologia e compatibilizar com trabalho. Dizem que a rosa morre mais rápido que o jardineiro.

Pois bem, o trabalho hoje em dia é palco de inclusão. Os deficientes físicos, por exemplo, têm lugar assegurado e até cotas dentro das empresas. Por isso as doenças, ditas da alma, deveriam ultrapassar as barreiras do preconceito e receberem tratamento legal similar. Isso porque é dificílimo compatibilizar as exigências do trabalho e administrar o transtorno bipolar. Muito se tem dito do burnout e da depressão. Mas bipolaridade ainda permanece de fora, e só por um encaixe forçado se conseguia proteger o bipolar.

Só quem tem a doença sabe como é estar em crise e não poder se ausentar sem ter as faltas associadas a um quadro de desconfiança. É de suma importância que as prerrogativas previdenciárias e sociais se estendam àquele que tem dificuldade emocional.

A 3ª Turma do Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região (RS) condenou a operadora de telefonia Claro a indenizar em R$ 10 mil uma vendedora que adquiriu transtorno afetivo bipolar. O problema foi caracterizado como doença ocupacional, já que o ambiente de trabalho contribuiu para o desencadeamento da patologia. A empresa também deve pagar os salários do período em que a empregada fez jus à estabilidade, já que foi despedida enquanto estava inapta ao trabalho.Em primeira instância, a magistrada entendeu que a doença não foi causada pelas condições de trabalho da reclamante. Para fundamentar sua decisão, a juíza utilizou laudo pericial que descartou relação de causa e efeito (nexo causal) entre o trabalho e a patologia. O perito, entretanto, admitiu a possibilidade do trabalho ter sido elemento desencadeador da doença, se as condições laborais correspondessem às alegações da reclamante. Inconformada com a sentença, a vendedora recorreu ao TRT4.

Na apreciação do caso, o relator do acórdão na 3ª Turma, desembargador Luiz Alberto de Vargas, argumentou que, admitida a possibilidade das condições de trabalho atuarem como concausa (causa concorrente) para o desenvolvimento da doença. Nesse aspecto, o magistrado destacou o primeiro depoimento, que confirmou que a trabalhadora estava submetida a jornadas excessivas, de 10 a 12 horas diárias, e que em datas festivas trabalhava mais. O depoente também declarou que a vendedora se afastou do trabalho por estresse, o que foi relatado pelo substituto da empregada doente. A segunda testemunha também afirmou existir pressão quanto às vendas da empresa e que ouviu falar que a reclamante havia se afastado por problemas de depressão.

Diante desse contexto, o relator divergiu da sentença de origem, salientando, ainda, os laudos emitidos em razão dos diversos afastamentos do trabalho realizados pela vendedora, sendo que em um deles há referência sobre elementos estressores ligados ao trabalho como uma das causas do quadro psíquico da vendedora.

Esse tipo de olhar do judiciário é um grande alento para trabalhadores que sofrem com a bipolaridade e não encontram mecanismos legais de proteger-se das dispensas arbitrárias e de se tratarem. Geralmente esse tipo de trabalhador se sente “puxado ainda mais para baixo” e enfrenta a perda de confiança em si próprio e ainda perde a visão de futuro.

Não é demais ressaltar o significado do trabalho na vida das pessoas e seu papel singular na construção da autoestima e da identidade. Para muitos bipolares só o fato de ter uma atividade já é uma estabilidade. Por isso, uma justiça firmemente convencida de que o trabalho pode agravar e desencadear essa doença é um grande avanço rumo à recuperação do verdadeiro sentido do trabalho.

. Por: Maria Inês Vasconcelos, Advogada, pesquisadora, professora universitária e escritora.

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