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12/03/2022 - 08:01

Petrópolis: a lama e a memória oficial

No dia 15 de fevereiro de 2022, o Brasil assistiu horrorizado às terríveis experiências vivenciadas pela população de Petrópolis (RJ) em decorrência de um forte temporal que atingiu a cidade. A enxurrada que causou deslizamentos, pelo menos 200 óbitos, espalhou lama por toda cidade e revelou uma triste realidade, muitas vezes ocultada e esquecida pela construção da memória oficial de Petrópolis, a cidade imperial.

Andando pelo seu centro histórico (e para além dele), as referências aos tempos de Império se encontram por toda parte dos casarões históricos (pertencentes a algum nobre ou membro da elite do passado) aos nomes das ruas e do comércio. Logo após o vislumbre das referências imperiais, surge em seguida a memória ligada à colonização alemã da segunda metade do século XIX. Assim, quem conhece Petrópolis superficialmente sai com a impressão de ter passeado por um conto de fadas, cheio de reis, rainhas e gente branca, uma urbe com um ar “europeu”.

Porém, longe de caracterizar uma Petrópolis real (condizente com as condições de vida da grande maioria de sua população), a imagem da linda cidade imperial é uma memória oficial, construída coletivamente e com claras intenções. Toda memória é fruto do presente em que foi construída e do presente em que é mantida, guardando estreitas relações com estes momentos de mobilização.

Ao longo dos anos, a memória oficial de Petrópolis selecionou aquilo que os poderes estabelecidos desejavam que fosse lembrado, silenciando e ocultando grandes problemas e questões sociais que, sendo invisíveis, não precisariam serem enfrentados. Portanto, os desastres periódicos na cidade e a sua imaculada imagem oficial não são processos sem relação. Os grupos que se encastelam no poder (e isso não é privilégio da cidade imperial) produzem memórias que se relacionam diretamente com seus projetos de sociedade.

Assim, espalharam-se por Petrópolis monumentos imperiais e nomes alemães. Mas, paralelamente a toda memória oficial, correm subterraneamente memórias concorrentes, cheias de valor. Portanto, ainda que não haja uma placa para lembrar ao distraído turista, é preciso falar que onde hoje existe o exuberante Palácio de Cristal havia antes um quilombo. Ainda que se esqueça de mencionar que próximo aos casarões dos nobres da Av. Koeler, ao final da rua, havia em outros tempos um mercado de pessoas escravizadas.

É preciso lembrarmos e ressaltarmos que a cidade imperial, que tanto se orgulha de sua tradição europeia, também era uma cidade de africanos, afro-brasileiros escravizados e seus descendentes, muitos dos quais ficaram embaixo da lama depois desse triste dia de fevereiro de 2022. Uma cidade tão complexa quanto nosso país.

Por mais que a memória oficial de Petrópolis pinte uma cidade bela e branca, a enxurrada de fevereiro revelou o lado esquecido e oculto da cidade de Pedro II. Aqueles que a memória e o poder oficial esquecem e tentam sistematicamente apagar da história são os mais atingidos pelas tragédias que chocam a coletividade no presente.

A lama que suja o monumento à figura serena do Imperador é a mesma que destruiu vidas e trajetórias, causada pelo descaso de um poder público que não só abandona parte de sua população, como também busca apagar essas pessoas da História. Mas, como disse Peter Burke, “a função do historiador é lembrar a sociedade aquilo que ela quer esquecer”. Então, aqui estamos, relembrando o passado oculto da cidade serrana fluminense.

. Por: Mariana Bonat Trevisan, mestre e doutora em História pela Universidade Federal Fluminense, professora da área de Linguagens e Sociedade, curso de História, do Centro Universitário Internacional Uninter. É também coautora do livro “História e Memória, Diálogos e Tensões”, publicado pela editora Intersaberes.

. Por: Renan da Cruz Padilha Soares, graduado em História pela Universidade Federal Fluminense e mestre em Práticas na Educação Básica pelo Colégio Pedro II, trabalhou por três anos na Escola Municipal Ver. José Fernandes, no bairro do Alto da Serra em Petrópolis e, atualmente, é professor da área de Linguagens e Sociedade, curso de História, no Centro Universitário Internacional Uninter.

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