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06/06/2008 - 10:06

De volta ao passado


A qual capricho do destino se devia a volta àquele fim de mundo, marcado por árvores de troncos encurvados, desprovidas de qualquer folhagem? Impossível responder. Toda a poeira acumulada nas estradas da vida — poeirentas, é claro — pesava toneladas, que deixariam inibido o mais potente aspirador de pó. E foi justamente nas entranhas de uma dessas bibocas que L. resolveu procurar um amigo, uma lembrança, uma fonte de alergia. A solidão o incomodava e naquele lugar ermo só restava pagar o devido tributo à angústia. O que L. não conseguia encontrar era uma explicação para sua volta ao lugar que abandonara um dia, cheio de esperanças e de picadas de mosquitos. Ninguém o estava esperando, no entanto o complexo da cocheira o fizera regressar, cabisbaixo, derrotado e com uma dilacerante dor nas tripas.

Por via das dívidas, chegara à ruína.

Mesmo sem padecer de um exagerado apego à realidade, não poderia deixar de negar a evidência gritante: A sorte madrasta virara-lhe as costas, sem maiores explicações, de sorte que, contrariamente a tantos felizardos, L. estava apto a afirmar, com pleno conhecimento de causa, ter uma madrasta calipígia.

L. sacudiu a cabeça, como se tentasse afugentar maus pensamentos. Tudo que conseguiu foram pontadas lancinantes na sua caixa craniana, que parecia querer se soltar. Aparafusou-a metodicamente, ciente de que, em hipótese alguma, poderia perdê-la. Precisava dela, ao menos para poder carregar seu boné de aba violeta. Além disso, como poderia, acéfalo, jurar, perante uma autoridade, ser ele mesmo. Iriam lhe pedir a carteira de identidade, examinariam a fotografia e não haveria nenhum zeloso guardião da ordem capaz de aceitar ser ele — L.— filho de K.e M. , sem um breve reconhecimento dos seus traços fisionômicos. Era preciso manter a cabeça fria, sem dela se separar, para colocá-la, por exemplo, dentro de um congelador.

Urgia fazer as pazes com o senso comum., como se esse sujeito consentisse refugiar-se no que restava do burgo poeirento, mera cidade fantasma perdida no meio do nada.

Uma sombra projetou-se a seu lado. Fitou com atenção, mas nada viu, a não ser a mancha escura. Qual teria sido o corpo opaco a se interpor no caminho dos raios daquele sol inclemente? Como bom Titanic, L teria ficado radiante se pudesse ter a certeza que não havia iceberg algum se aproximando.

"Quem não deve não treme" — murmurou, baixinho o suficiente para que seus próprios ouvidos não pudessem captar a informação. Com os sentidos em alerta máxima, procurou criar coragem. Já estava no fundo do poço. Iceberg algum ousaria persegui-lo lá. Estudioso do comportamento das banquisas, sabia da ojeriza que os icebergs nutrem em relação aos poços.

A realidade veio a seu encontro com a brutalidade cujo segredo desde sempre lhe pertencera. O vulto escuro, a grande incógnita, a sombra, enfim, era a sua. Estivera, por alguns instantes, com medo da própria sombra. Essa aparição longilínea era tão-somente uma prova material de sua existência e opacidade. Movimentou-se, apenas para ter certeza do fato e preparou-se para rir da própria covardia. Não cabia dúvida alguma; seus movimentos eram repetidos pela materialização de seus temores. Para reforçar a certeza, deteve-se bruscamente. Por falta de aviso, talvez, a sombra continuou se deslocando e assim continuou rumo a um aspirador voraz, no qual desapareceu. Bem feito. Por conta daquele experimento insensato, não possuía mais sombra. Prometeu a si mesmo que, assim que possível, procuraria adquirir uma outra.

Impossível tentar ser inteligente no meio daquela praia sem mar. Mesmo assim, sentiu a necessidade premente de uma companhia. Era um direito pelo qual estava disposto a lutar, sem medir sacrifícios, indiferente ao derretimento de seus neurônios. Cansado de beijar princesas e acordar com sapos no colo, olhou para o aspirador. Lá estava ele, presença inexplicável e sonho medíocre de consumo.

Por uma fração de eternidade, pareceu-lhe que, à semelhança de sua sombra, todo seu passado estaria encerrado nas vísceras daquele eletrodoméstico.

A imaginação pôs-se a galopar. Então, no bojo do ser niquelado estariam aboletados os episódios felizes e nem tanto de sua existência até aquele momento. Os encontros desencontros, amores desamores, êxitos frustrações dispostos no interior dessa baleia, desempenhando, em conjunto, o papel de um Jonas de plantão. Momentos afortunados e ominosos, amizades desfeitas, aquele noivado ridículo, tudo. Até o fiel Gregor, seu querido dogue alemão. À sombra das ilusões perdidas, floresceu o desejo da contemplação investigativa.

Haveria meio de encontrar algum amigo? Como saber, se até aquele instante a certeza maior era a dúvida profunda? Como recorrer a Platão antes de encontrar uma caverna apropriada? Um arroubo metodológico impunha-se, no entanto.

Resolveu arriscar e cuidadosamente colocou a mão no interior do aparelho. Passou a apalpar. Instantes depois, sentiu uma dor, um sofrimento agudo, lancinante. Retirou às pressas a mão ensangüentada. Enquanto contemplava o estrago, sem nada entender, veio-lhe à mente um conselho que seu avô, fanático discípulo de Schopenhauer, lhe dera:

"Nunca procure um cachorro dentro de um aspirador de pó. Quem poderá lhe garantir que as vacinas estão em dia?".

. Por: Alexandru Solomon é escritor, formado pelo ITA em Engenharia Eletrônica e mestrado em Finanças na Fundação Getúlio Vargas. Tem seu recente romance´Não basta sonhar` (Ed. Totalidade) disponível nas livrarias Cultura (www.livrariacultura.com.br), Saraiva (www.livrariasaraiva.com.br) e Laselva (www.laselva.com.br). | E-mail: [email protected]

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