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20/12/2008 - 07:22

A poeta e a atriz, o vento e as rosas


Chego ao Rio e vou almoçar no restaurante Alho e Óleo, no Flamengo, com José Mauro Gonçalves. Zé Mauro é um mineiro de Barbacena que cinqüenta anos atrás lançou o livro "O Café Society", desvendando o Rio e o Brasil daqueles tempos, nos quais duzentas famílias comandavam o jogo político e social, e se encontravam no Rio, a mais agradável capital do planeta.

É uma conversa nostálgica, de um mundo que já não existe. Na volta, passamos pela praia do Flamengo e ele vai apontando. Aqui morava o José Eduardo Macedo Soares, que já foi considerado o "príncipe dos jornalistas brasileiros", mais adiante o Carlos Lacerda, talvez o mais influente jornalista brasileiro da história, em outro apartamento a Teresa Souza Campos, ao lado o João Cabral de Mello Neto.

As histórias vão fluindo, de ectoplasmas de um passado brilhante que os tempos não trazem mais.

Aí ele me contou uma história que transmito tal e qual a recebi, e que ele ouviu da principal personagem, a atriz Maria Fernanda, filha de Cecília Meirelles, em um programa na TV Educativa.

Maria Fernanda era uma atriz belíssima, filha de uma das musas do Rio de Janeiro, a poeta Cecília, paixão de todos os freqüentadores da Livraria Martins, e de grandes jornalistas, como Carlos Lacerda e Luiz Fernando Mercadante.

Nos anos 50, interpretou a personagem de Vivien Leigh em "E o vento levou", em uma montagem carioca. Por conta da interpretação, ganhou um estágio na BBC de Londres. Certa vez a incumbiram de entrevistar a própria Vivien Leigh. Na entrevista, ela contou de suas peripécias teatrais e tornou-se grande amiga da atriz.

Em 1964 Vivien Leigh veio visitar São Paulo. Solicitou aos organizadores do evento que trouxessem sua amiga. Não foi possível. Quando cobrou sua presença, os organizadores informaram que ela estava acompanhando a mãe em fase terminal no Hospital.

No dia seguinte de manhã, Vivien levantou, foi até uma florista, comprou um buquê de rosas, pegou a ponte aérea e seguiu para o Rio. Foi até o hospital, enfrentou os porteiros que não queriam deixar que subisse até o apartamento de Cecília. Chegando, a poeta estava sozinha: Maria Fernanda tinha ido para casa descansar. Vivien esperou Cecília acordar, deu-lhe um beijo na testa, deixou o buquê em um vaso com água e retornou para São Paulo.

A poeta recuperou-se e ganhou uma sobrevida de dois meses. Nesse ínterim escreveu um de seus últimos poemas, que falava de rosas, como tantos outros que escrevera, e que dedicou a Vivien Leigh.

Há uns dez ou doze anos dia fui a um terapeuta indicado por uma amiga. Ele trabalhava com uma técnica desenvolvida a partir dos anos 50 nos Estados Unidos. Partia-se da constatação de que cada trauma de vida, cada momento infeliz, gerava tensões no corpo, naquela rede de vida e energia que envolve os ossos, o sangue e os mantém sob a pele. À medida que o terapeuta identifica e vai desmanchando os nós, as lembranças afloram com a força de um furacão, como se os fatos fossem da semana anterior.

Em alguma parte do corpo tenho os nós da última visita à casa de infância. A mudança já tinha vindo com minha família para São Paulo. Eu já estava aqui há alguns anos. Saí de São Paulo no sábado, para minha despedida solitária. Cheguei a Poços, entrei na casa, passei por cada cômodo vazio, contemplei cada vestígio de lembrança, pensei nos velhos deixando toda sua história para trás e chorei em cada sala, em cada quarto e no quintal silencioso. Até algum tempo atrás, o fantasma da casa vazia me acompanhava nos meus piores pesadelos.

Certamente, o terapeuta encontraria os nós da noite que varei na estrada, com meu primo Oscar, vindo de Poços para um Pronto Socorro da Rua Ribeirão Preto, em São Paulo, onde meu pai estava internado com um AVC grave. Parte dos nós se formou na entrada da UTI, quando ele via em cada pessoa da sala, em mim, na Regina, o vulto dos irmãos falecidos. Chamava-nos de Felipe, Clara e Rosita.

Muitos nós se formaram na manhã seguinte, quando fui até nossa casa pegar seus documentos. Não há impotência maior do que invadir o dia a dia de uma pessoa abatida por morte ou doença grave. É como se captasse as últimas esperanças antes da desgraça; ou os últimos sinais de desespero antes da tragédia. E que ambos não servissem mais para nada.

Abri sua carteira, olhei os documentos, o pequeno patuá que alguém lhe deu para espantar o azar, a carteira de trabalho, o hollerith com o último salário. Encontrei o carnê do primeiro patrimônio que ele começava a tentar comprar, depois de perder os bens de toda uma vida: uma linha telefônica. Fui até o guarda roupa para apanhar algumas camisas. Estavam lá, todas impecavelmente brancas, impecavelmente limpas.

Outros nós se incrustaram na alma, quando, anos depois, o internei em uma Clínica de Saúde, para preservar dona Teresa, supondo-o tendo perdido completamente a razão. Mas voltei no dia seguinte retirá-lo e trazê-lo de volta ao lar.

Haverá nós da última noite de dona Tereza. Das onze da noite da véspera, quando me deu uma bruta ansiedade e passei na Beneficência para o que nem supunha fosse a despedida. Até o telefone que tocou de madrugada do hospital, e que pela primeira vez não me acordou, eu que passava noites sobressaltado com campainhas de telefone me convocando para levar dona Tereza ao Incor. Nós e nós quando cheguei ao andar e minhas irmãs me olharam com olhos de "acabou". E outros nós quando, no velório, contemplei os olhos sofridos de vó Martha, cuja dor de mãe jogava para segundo plano dores de filhos e irmãos.

Certamente um dos nós será para Luizinha, quando, aos doze anos, soube da separação, silenciosamente desceu ao seu quarto e montou um quadrinho com fotos do pai e da mãe e colou no seu quadro de avisos. E outros para Mariana, nas duras conversas para ajudar a arrancar a angústia que sufocava seu coração de adolescente.

E aí me dou conta que felizes são aqueles que conseguem, no dia-a-dia, sufocar esse inventário de pequenas e grandes tragédias que acompanham todas as pessoas. Muitas vezes os nós vêm como armadilhas, como laços amarrando para sempre vontade e futuro à celebração soturna de cicatrizes abertas. Ou então estimulando o sentimento destrutivo da autocompaixão ou, pior, do arrependimento.

Para mim são lembranças fundas, que vêm me visitar vez por outra, quando os fins de semana são um pouco mais vazios, e as saudades um pouco mais apertadas. Convivo com esses fantasmas quando descem do sótão da lembrança, acolho-os, abrigo-os ao som de uma música adequada. Depois, com toda gentileza despacho-os de volta ao seu espaço, ajudado pelo ritmo piedoso da semana de trabalho, que impede a cabeça de surfar pelas ondas das más lembranças.

Nas livrarias: "A Casa da Minha Infância", coletânea de crônicas do autor.

Por: Luis Nassif, jornalista (www.luisnassif.com.br).

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