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17/01/2009 - 13:37

Tempos difíceis


Tempos bicudos. Expressão feliz para descrever sua situação. Depois de anos de trabalho, L. passara a engrossar o contingente dos desempregados. A perda do seu emprego materializou-se em algum algarismo perdido atrás da vírgula das estatísticas oficiais. Chegara a vez dele, ponto final. A batalha da recolocação não foi bem sucedida. Diplomas mofados, pretensões diminutas e anos de experiência não foram suficientes para impressionar senhores sisudos que folheavam distraidamente seu currículo. A idade era o argumento que invariavelmente acabava soterrando-lhe as esperanças.

Viver era preciso. Precisava de uma solução criativa, algo que fugisse ao convencional, onde não havia perspectiva alguma e que tornasse o futuro menos apavorante. Além de adotar o título de consultor – forma elegante de esconder a ociosidade forçada – na falta de coisa melhor, L. resolveu fazer jus a essa qualificação.

No início, pensou em se tornar consultor financeiro independente; afinal, seu passado e seu mestrado poderiam atrair clientes. A idéia foi abandonada rapidamente. Era impossível fazer frente às instituições financeiras que disputavam com ferocidade pequenas, médias e grandes fortunas, com modelos imbatíveis e propaganda sedutora. Até suas próprias economias estavam a cargo do Banco ***, que regularmente o incentivava a aumentar suas aplicações, quando seu drama era justamente o inverso, presenciar a degringolada dos saldos.

Premido pelas circunstâncias, L. saiu em busca daquilo que, anos atrás, aprendera ser chamado de nicho específico. Devia encontrar algo. Alguma atividade diferente, em que o insuperável fosse ele. Ao invés de insistir num filão no qual não tinha a menor oportunidade, imaginou tornar-se uma espécie de conselheiro. Conselheiro de qualquer coisa. A sorte bateu-lhe à porta, talvez por descuido, mas L. soube agarrar a oportunidade. Tomou conhecimento, por acaso, do sumiço do filho de um vizinho e, movido por bons sentimentos, teve a idéia de oferecer ajuda. A Internet ainda engatinhava e seu uso era bem restrito.

Apresentou-se aos pais aflitos, solicitou uma fotografia do menino e jogou–a na rede. Quis o acaso que o conhecido de um conhecido de um conhecido avistasse a criança, permitindo um final feliz com a localização e volta da criança perdida. Desnecessário descrever a alegria dos pais.

O feito, devidamente ampliado, tornou L. uma figura querida; para alguns, detentor de poderes especiais. Sem querer, sem fazer esforço algum, simplesmente devido a uma circunstância feliz, seu prestígio deu a volta ao prédio, em seguida ao quarteirão e foi se espalhando. Passou a ser consultado sobre os mais diversos assuntos.

L. não tinha a menor vocação para a charlatanice. Ao se deparar com algum problema insolúvel, evitava iludir seu cliente. Muitas vezes, no entanto, fazendo uso apenas do bom senso, conseguia orientar sem mistificar.

Aos poucos, aquilo que não passava de uma análise do problema de uma pessoa aflita, não raro, levava à descoberta de uma solução imaginativa. A lógica o fazia antever situações futuras, a tal ponto que ia se firmando a crença nos seus poderes de adivinho, para não dizer vidente. L. evitava os exageros, rejeitando a tentação de colocar uma bola de cristal em cima da sua mesa ou de mencionar possíveis mensagens do além às quais teria acesso mercê de algum dom particular.

'Os desfechos são quase sempre imprevisíveis' costumava dizer, mas 'se ao menos pudermos tentar enxergar com clareza o que se passa, teremos nos preparado para não sermos de todo surpreendidos'. Ditas por qualquer um, essas palavras não passariam da mais atroz obviedade, mas eram cada vez mais numerosos aqueles que, no desespero, acorriam em busca de algum tipo de apoio desse senhor possuidor de poderes especiais.

Foi assim que L. convenceu um médico a mudar seu consultório, tranqüilizou uma senhora aflita, afirmando que iria salvar seu casamento, convenceu um jovem a desistir da carreira de cantor e até ajudou um senhor de idade a localizar uma jóia de família, perdida. Sempre atento a todos os detalhes que lhe eram contados, e nisso ele era perito, conseguia, de alguma forma inexplicável para os outros, fazer afirmações muitas vezes acertadas, quanto ao futuro. Cometia enganos também, contudo tamanho era seu prestígio, que eventuais fracassos não empanavam o brilho dos acertos.

Era a volta dos bons tempos; prova disso é que o antigo quarto do filho casado teve de ser promovido de 'quarto da bagunça' a sala de espera. Certa noite, depois da saída do último cliente, L. ligou a televisão e, fato inédito, adormeceu durante um filme. Adormeceu e sonhou.

No sonho encontrava uma mulher de cabelos negros esvoaçantes e corpo esculturaL. Ela usava um vestido decotado, bem curto, de uma espécie de seda. Rosto de traços finos, perfeitos, boca com lábios carnudos pintados num tom vermelho muito escuro, quase preto, olhos negros. A mulher vinha em sua direção, com andar sinuoso. Os crisântemos estampados no vestido roxo ondulavam à altura dos quadris. L. queria dizer algo, mas, no sonho, o sorriso da bela mulher o deixara paralisado. Ao chegar perto dele, ligeiramente inclinada na sua direção, o suficiente para revelar-lhe a riqueza viçosa do decote, a estranha murmurava: 'É o seu fim'... Por qual razão seria o fim, L. não soube, pois acordou apavorado sem saber onde estava. Procurou recuperar a calma, ao perceber que estava na sua cama, totalmente vestido. Caminhara sem se dar conta. 'Perfeito, agora sou sonâmbulo. Era o que me faltava'– pensou. Ia acordar sua mulher, mas desistiu. Procurou, sem sucesso, rememorar os traços da desconhecida. Poderia ser um dos inúmeros rostos do seu novo dia-a-dia. Se era ou não, não soube dizer. Foi-lhe impossível estabelecer qualquer ligação entre o sonho e a realidade.

Com o tempo, o estranho sonho passou a perder clareza nos seus detalhes. Mas fora tão marcante que, nos momentos de devaneio, um bonito rosto desconhecido, desfocado o suficiente para não ser identificado, tornava a aparecer.

Decorrido mais de um ano, L. constatou ter conquistado a condição de celebridade local. Além das velhinhas desesperadas, dos jovens sonhadores e das almas solitárias em busca de um conselho – muitas vezes apenas de uma palavra gentil de quem lhes mostrava atenção-, passou a receber a visita de autênticos pesos pesados. Empresários de prestígio marcavam hora com antecedência, dispostos a remunerá-lo condignamente, desde que lhes fosse garantido o anonimato. Como foi impossível criar uma sala de espera VIP, enquanto considerava trocar de apartamento, a solução encontrada consistiu na ida de Maomé (perdão, L. ) à montanha, geralmente de noite, horário compatível com a discrição.

Naquela noite, L. estava indo para a segunda sessão com um colunável, reputado pelo seu sucesso na Bolsa de Valores, acerca do qual corriam boatos de uma quebra inevitável. Caminhando sem pressa numa rua deserta, L. teve a desagradável sensação de sentir-se seguido.

Olhou em volta e teve, de pronto, a confirmação das suspeitas. Um carro de faróis desligados deslizava silenciosamente a seu lado. O veículo parou, ouviu-se o ruído de uma porta batendo. L. apressou o passo. O automóvel se pôs em movimento, o ultrapassou, estacionou novamente e dele desceu um indivíduo de rosto coberto. Não foi preciso olhar para trás para saber que a batida de porta correspondia ao desembarque de um comparsa que estava se aproximando e que se tratava de um assalto. 'Sampa de todos os assaltos', murmurou L.

Segundos mais tarde estava cercado, com o carro bloqueando qualquer possibilidade de fuga em direção ao meio da rua.

– Vamos lá, tio, passe a grana. Se gritar, tenho dedo mole.

Tio? Olhou com mais atenção e notou que os dois rapazes, se bem que mascarados, eram provavelmente 'de menor'. Resistir, nem pensar. Gritar? Quem iria ouvir? Se por acaso alguém ouvisse, quem seria louco o suficiente para se meter em confusão?

– Gente, calma. Vou tirar a carteira do bolso do paletó. Juntou o gesto à palavra. - Um deles pegou a carteira .

– Mas que miséria é essa? Não pode andar assim durango. – De dentro do carro ouviu-se uma voz:

– Veja se tem cartão de banco, aí ele vai passear com a gente.

– Não tem nada.

– Não pode. Olhe direito. Já tá chumbado?

– Vem ver, não enche.

A porta do lado do motorista se abriu, dando passagem a uma mulher de cabelos negros esvoaçantes e corpo escultural. Vinha em sua direção, com andar sinuoso. O vestido decotado, bem curto, parecia de seda, e aquelas flores estampadas eram crisântemos, com certeza...

. Por: Alexandru Solomon: “Crônica” [ O autor, numa escrita que encerra em si mesma a visão do próprio autor e a lúdica criatividade literária do conto, elucida-nos o Universo com a alegria de um humor, às vezes contido nas entrelinhas, o que torna 'Sessão da Tarde' isso mesmo: um cálice de letrinhas a ser ingerido no ritmo calmo da rede que arrasta as varandas]. Em São Paulo: Livraria Pega-sonho rua Martinico Prado, n° 372 – Telefone (11) 3668-2107. e-mail: [email protected] | Blog do autor: http://blogdoalexandrusolomon.blog.terra.com.br

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