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29/01/2009 - 09:36

A reforma fiscal e o crescimento econômico

Transcorridos mais de 60 anos do lançamento, por Stefan Zweig, da interessante obra Brasil, País do Futuro, e apesar dos avanços que a economia brasileira registrou entre a década de 1940 e a de 1980, a interrupção desses avanços viu a euforia de Zweig se transformar emresignação e conformismo. Em vez de indignar-se com o medíocre crescimento econômico das duas últimas décadas do século passado, o país parece satisfazer-se com a perspectiva de uma ligeira melhoria nesta década – algo da ordem de 4% a 5%. E isso se a conjuntura internacional não desandar.

De olho no retrovisor, o país perde terreno na caminhada em direção a uma economia moderna e a uma sociedade menos desigual distanciando-se das principais economias emergentes. Os números são eloqüentes. Entre 1950 e 1970, o Brasil estava bem à frente, e a uma distância considerável de alguns de nossos atuais competidores com respeito aos índices de crescimento da renda per capita. Enquanto a renda média do brasileiro crescia à invejável taxa de 4,3% ao ano (a.a.), a dos chineses, mexicanos e indianos aumentava a um ritmo anual de 3,6%, 3,0% e 1,6%, respectivamente.

A notável reversão ocorrida nas décadas recentes derreteu as expectativas brasileiras de ingressar no terceiro milênio em posição de destaque no cenário internacional. Da liderança em matéria de crescimento, o Brasil passou à retaguarda.1 Em boa medida, tal resultado reflete a ausência entre nós de estratégias para conciliar a necessidade de superar as crises e consolidar a estabilidade econômica com a restauração da confiança e do horizonte necessário para estimular os investimentos e promover o crescimento. Mantido o medíocre desempenho do passado recente, só daqui a 100 anos o Brasil conseguiria duplicar a renda per capita.2

As dificuldades e restrições que o Brasil enfrenta para dar o esperado salto em direção a um novo patamar de crescimento são conhecidas e incluem o baixo nível de investimentos, as deficiências de infra-estrutura e de logística, o tamanho da carga tributária e a baixa qualidade dos tributos, o baixo índice de incorporação de inovações tecnológicas ao processo produtivo, o baixo nível de escolaridade da população, o excesso de burocracia, o ainda insuficiente grau de abertura da economia, tudo isso submetido à precariedade do ajuste fiscal que abala a confiança do mercado financeiro quanto à possibilidade de o país superar crises decorrentes de mudanças no cenário econômico externo e também as expectativas dos empresários quanto à ampliação dos investimentos no país.

Assim, e apesar de o Brasil comparar-se favoravelmente com nossos competidores em questões relacionadas a estabilidade democrática, ausência de conflitos, solidez do sistema financeiro, auto-suficiência em petróleo e liderança no campo da energia renovável, boa infra-estrutura de comunicações e competitividade do agronegócio, a falta de solidez do ajuste fiscal mantém o país aprisionado em uma armadilha na qual a estabilidade monetária só se sustenta em um contexto de baixo crescimento. Não por acaso, portanto, a reforma fiscal está no centro das preocupações de acadêmicos, governantes e empresários. A despeito disso, falta entendimento sobre o conteúdo e a abrangência das mudanças necessárias para promover o ajuste estrutural das contas públicas e estabelecer as condições necessárias ao crescimento da economia.

O unânime reconhecimento de que a fórmula adotada nos últimos anos de promover o ajuste fiscal via aumento da carga tributária está esgotada deslocou o debate e a atenção de todos para a necessidade de se adotarem providências que viabilizem a contenção do crescimento dos gastos correntes, de modo a abrir espaço para a ampliação dos investimentos públicos e a redução do peso dos impostos. No entanto proposições nesse sentido, aventadas por especialistas na área, enveredam por caminhos politicamente sensíveis, pois implicam rever decisões que buscaram instituir garantias constitucionais para a sustentação do regime de seguridade social adotado em 1988, e, portanto, encontram resistências para prosperar.

Curiosamente, o regime de garantias previsto na proposta da seguridade social foi, na prática, abandonado logo no início, uma vez que a tentativa de abrigar, sob um regime comum de financiamentos, direitos de natureza diversa mostrou-se equivocada. Como a conta oriunda do pagamento dos benefícios previdenciários deriva de direitos individuais legalmente assegurados, ela tem de ser paga independentemente da origem dos recursos. Isso significa que quando cresce o tamanho dessa conta reduz-se a disponibilidade dos recursos da seguridade para financiar os demais programas abrigados nesse regime. Foi o que ocorreu, ocasionando, logo em seguida, o rompimento do princípio constitucional de solidariedade no financiamento e na gestão da seguridade social, rompimento que se manifestou por meio da restituição à previdência da exclusividade dos tributos sobre a folha de salários e da busca de novas garantias financeiras para a saúde. A extinção do Instituto Nacional de Assistência Médica e Previdência Social (Inamps), a criação do Sistema Único de Saúde (SUS) e da Lei Orgânica da Assistência Social (Loas) também marcaram o abandono da proposta de integração da gestão da seguridade, ratificando o abandono da solidariedade no financiamento.

Não obstante, o não reconhecimento oficial desse abandono acarretou grandes distorções e é responsável direto pela natureza do ajuste fiscal promovido nos últimos anos.

O aumento da carga tributária, a deterioração da qualidade dos tributos e os desequilíbrios na repartição dos recursos fiscais na federação são conseqüência da interação negativa de duas decisões importantes tomadas durante os trabalhos de elaboração da Constituição de 1988: a descentralização da receita tributária, uma demanda da federação, e a criação de um regime financeiro exclusivo para a seguridade social. A dualidade fiscal daí decorrente está na raiz das distorções que se acumularam a partir de então e das dificuldades encontradas para removê-las.

O caráter polêmico das reformas estruturais necessárias para corrigir o problema apontado e o receio de que a ampliação da agenda da reforma fiscal possa inviabilizar sua aprovação conduzem à defesa de mudanças pontuais e de efeitos lentos, como, por exemplo, a imposição de um teto para o crescimento dos gastos correntes a fim de que seja possível abrir espaço à modernização tributária sem comprometer as metas do ajuste fiscal. A alternativa parte do reconhecimento de que a solução dos problemas fiscais requer mudanças estruturais que removam as causas dos desequilíbrios que foram se acentuando nos últimos anos. Assim, a primeira defende ajustes pontuais enquanto a segunda propõe uma reforma abrangente.

Vale a pena notar que, apesar de serem pontuais, as medidas usualmente sugeridas para conter a expansão dos gastos não são menos polêmicas, pois implicam restrições à expansão dos programas abrangidos pela seguridade social, que cresceram em decorrência da universalização dos direitos de cidadania e da adoção do salário mínimo como piso para os benefícios, tendo em vista evitar a corrosão provocada pela inflação.

Mudanças que impliquem separar da previdência o chamado “componente assistencial”, isto é, os benefícios que não têm relação direta com a contribuição, ou eliminar o piso previdenciário, entram em choque, portanto, com aspectos festejados da Constituição de 1988 e encontram forte resistência.

Em decorrência, a reforma tributária e a eficiência da gestão pública permanecem aprisionadas em espaços estreitos. Com a necessidade de ampliar investimentos, a impossibilidade de reduzir a carga tributária de modo significativo conduz à continuidade dos ajustes pontuais nos impostos para ir removendo, gradualmente, as distorções mais relevantes. No tocante à gestão pública, os problemas causados pela distância entre o financiamento (recursos centralizados) e a gestão das políticas sociais (descentralizada) impõem dificuldades à eficiência e à eficácia do gasto.

A opção por uma reforma abrangente se apóia na necessidade de eliminar a dualidade de regimes tributários para desatar o nó fiscal atado em 1988, que está na origem da interrelação entre as várias dimensões da questão fiscal: o engessamento do orçamento, o tamanho da carga tributária e a má qualidade dos tributos, os desequilíbrios federativos e a ineficiência da gestão pública. Ela se sustenta na proposição de que a ampliação da agenda abriria espaço para avançar simultaneamente no sentido da modernização tributária, da redução da rigidez do orçamento, da atenuação dos conflitos federativos e da melhoria na qualidade da gestão pública, tornando desnecessária a prorrogação de medidas transitórias – tipo Desvinculação de Recursos da União (DRU) – para garantir o ajuste fiscal.

Convém notar que a criação da DRU constitui um artifício para contornar os problemas decorrentes da ficção criada pela separação de dois campos tributários – os impostos e as contribuições –, ficção esta que na prática já foi há muito abandonada. A extinção da dualidade fiscal criada em 1988, com a eliminação da distinção artificial entre impostos e contribuições, tornaria desnecessária a prorrogação de soluções transitórias para reduzir a rigidez orçamentária, ao mesmo tempo em que abriria caminho para a harmonização das bases tributárias e a partilha de um Imposto sobre Valor Acrescentado (IVA) nacional e abrangente sobre o consumo de mercadorias e serviços, em substituição à multiplicidade de incidências sobre a produção de mercadorias e serviços hoje existente.

Este é o caminho traçado na proposta de Reforma Tributária que está sendo apreciada na Câmara dos Deputados e que tem sido objeto de preocupação de especialistas e parlamentares com respeito a alegadas conseqüências da extinção das contribuições sociais para a sustentação das garantias de financiamento da seguridade social, em especial no caso dos 24 regional e urbano programas de saúde, tendo em vista a extinção do Programa de Integração Social (PIS)/Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social (Cofins) e sua incorporação ao IVA federal, bem como a incorporação da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL) ao Imposto de Renda de Pessoas Jurídicas (IRPJ). Embora uma leitura simples da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) possa contribuir para tal apreensão, essas dúvidas são infundadas. A rigor, as garantias de financiamento da seguridade social já não guardam qualquer relação com o modelo concebido em 1988, que buscou criar um regime tributário exclusivo para a seguridade, diversificar as respectivas bases de arrecadação e instituir a solidariedade no financiamento e gestão dos programas por ela abrangidos. Conforme já observado, como os direitos previdenciários correspondem a benefícios individuais concedidos por lei a todos aqueles que preenchem os requisitos necessários para fazerem jus a eles, a conta que resulta da soma dos benefícios a serem pagos em determinado ano é uma conta em aberto: o governo tem de arcar com ela independentemente de quaisquer recursos especialmente destinados a esse fim. Isso não ocorre no caso dos serviços de saúde, que devem atender a um direito coletivo de todos os cidadãos, mas cuja prestação se sujeita a limitações financeiras porventura existentes.

Por isso, a disputa por recursos no âmbito da seguridade social se manifestou logo em seguida à implementação das novas contribuições instituídas pela nova Carta Constitucional. A regra de bolso que buscava reservar 30% da arrecadação oriunda das contribuições sobre salários, lucro e faturamento para a saúde nunca foi observada, levando os responsáveis pela área da saúde a buscar novas garantias financeiras. Primeiro com a instituição da contribuição sobre a movimentação financeira e depois com a aprovação da Emenda Constitucional (EC) no 29. De outra parte, a solidariedade pretendida, tanto no financiamento como na gestão da seguridade, foi também rompida logo em seguida, com a previdência recuperando a exclusividade das receitas oriundas da contribuição sobre os salários e a consolidação de regimes distintos de gestão financeira.

Em face do exposto, cabe indagar o que muda para a seguridade social com a proposta de reforma tributária contemplada na PEC. A resposta é: a rigor, nada muda de imediato.

A conta da previdência continuará sendo financiada pelas contribuições sobre os salários e o déficit coberto por recursos do Tesouro, independentemente de sua origem. No caso da saúde, a EC no 29 também já desvinculou o seu financiamento de qualquer relação com as contribuições sociais, ao relacionar o aporte de recursos federais ao setor ao montante aplicado no período anterior corrigido pela variação do produto interno bruto (PIB).

E no médio prazo? A retirada de qualquer referência a fontes exclusivas de financiamento da seguridade social do artigo 195 da Constituição significa uma ameaça ao financiamento da saúde? A instituição do IVA federal ampliará a competição com os estados em torno das alíquotas aplicadas sobre bases tributárias comuns e, portanto, poderá vir a limitar as possibilidades de sustentação das receitas federais?

Com respeito à primeira questão, vale a pena lembrar que a garantia constitucional não depende de onde, na Constituição, ela esteja inscrita. A rigor, a vinculação de um percentual de todos os impostos federais constitui uma garantia mais sólida do que a vinculação de impostos específicos, pois é sempre possível que, sob determinadas condições, o governo opte por ampliar os tributos que não estão vinculados a um determinado setor, reduzindo a garantia financeira. Aliás, não é por acaso que as demandas da área da saúde por uma nova regulamentação da EC no 29 tratem exatamente de reivindicar a vinculação de 10% das receitas federais ao setor como solução para seus problemas de financiamento.

No tocante à competição por alíquotas, convém ressaltar, em primeiro lugar, que ela já existe há algum tempo, pois a base de incidência do IVA federal terá o mesmo alcance daquela abrangida pelas contribuições que por ele serão absorvidas. De outra parte, ainda que estados e municípios viessem a se beneficiar dessa competição (o que é improvável), isso não significa reduzir a garantia de recursos para a saúde, pois nessa hipótese aumentaria a contribuição de ambos para o financiamento, com resultados positivos sob o ponto de vista da gestão descentralizada da política de saúde.

A garantia de recursos para a saúde prevista na PEC da reforma tributária tem outras vantagens importantes em comparação com a situação vigente. De um lado, os recursos destinados ao setor ficam menos vulneráveis aos efeitos de alterações no ciclo econômico sobre as respectivas disponibilidades financeiras. De outro, melhora o efeito redistributivo das políticas da seguridade social. No modelo atual, o financiamento da seguridade é altamente regressivo, reduzindo em grande parte o efeito positivo dos gastos sobre a distribuição da renda. Com a participação de recursos do imposto de renda no financiamento, diminuirá sua regressividade e, portanto, aumentará o efeito líquido das ações da seguridade social sobre os mais pobres.

A aprovação da PEC da reforma tributária daria um passo importante na direção de uma reforma fiscal abrangente, mas incompreensões e desconfianças que cercam o debate a respeito aumentam a incerteza com relação ao desfecho dessa proposta. Apesar da contribuição que uma reforma abrangente, que desatasse o nó fiscal que trava o crescimento, viria trazer para o futuro do país, as resistências enfrentadas acabam por conduzir à continuidade de ajustes pontuais, portanto, incapazes de produzir ganhos expressivos no médio prazo.

A lógica contábil que enfatiza o corte dos gastos é cristalina e atraente, e, por isso mesmo, perigosa. Bastaria vontade política para adotar medidas e promover as reformas que removam os focos de crescimento dos gastos. A lógica da reforma abrangente vê o problema fiscal sob outra perspectiva: a de que problemas complexos não comportam soluções simples.

Daí o receio que provoca com respeito à possibilidade de que ela possa inviabilizar ao invés de facilitar a redução da carga tributária e a modernização dos impostos.

No entanto, cabe indagar por que é mais fácil acreditar que reformas parciais, impopulares e politicamente controversas, como as que defendem o corte de benefícios previdenciários e assistenciais e a limitação dos gastos com a saúde, sejam vistas como uma opção de menor risco, em comparação com uma reforma abrangente? Ainda que fosse, como justificar tal posição quando os estudos a respeito da reforma previdenciária mostram que o efeito dessa reforma sobre os gastos públicos só se manifesta de modo significativo no longo prazo? No médio prazo, só com a economia crescendo mais rápido. mas como crescer mais com essa carga tributária?

A rigor, o debate sobre o problema fiscal brasileiro se assemelha ao que ocorria por ocasião das fracassadas tentativas de resolver o problema inflacionário. Então, como agora, medidas heterodoxas de fôlego curto não solucionavam o problema e criavam novas distorções.

Plano Real matou a inflação, mas ao não ser acompanhado por um plano fiscal, manteve a economia refém de baixas taxas de crescimento. O complemento do Plano Real é o Plano Fiscal. Ao optar por ajustes fiscais provisórios e de fôlego curto, a exemplo das tentativas heterodoxas de combate à inflação, o Brasil matou a inflação, mas debilitou o crescimento. Está na hora de corrigir este equívoco.

A essência do Plano Fiscal está no reconhecimento de que a expansão dos benefícios previdenciários, o engessamento do orçamento, o tamanho e a má qualidade da tributação, 26 regional e urbano os conflitos federativos e a ineficiência da gestão constituem, na verdade, manifestações dasmúltiplas faces do problema fiscal brasileiro, as quais foram se deteriorando em conseqüência da incapacidade que teve o país de desatar o nó fiscal atado pela Constituição de 1988. Não obstante o caráter multifacetado do problema fiscal brasileiro, persiste uma enorme desconfiança a respeito da viabilidade política de uma reforma abrangente, consubstanciada em um Plano Fiscal. Essa desconfiança conduz a certa resignação e à esperança de que, por meio de alguns remendos, seja possível conter o crescimento dos gastos; e assim abrir espaço para avanços graduais no sentido de eliminar as principais distorções que os tributos existentes provocam, à luz de preocupações com a retomada do crescimento e da competitividade daprodução nacional.

Caso prevaleça essa atitude, se a resignação e o conformismo continuarem subjugando a vontade de crescer, o Brasil seguirá na situação de país do futuro.

. Por: Fernando Rezende, professor da Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas (Ebape) da Fundação Getulio Vargas (FGV)/Ipea/Dirur.

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