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22/03/2007 - 09:23

Mutabilidade quântica e beleza infinitesimal na pintura de Carlito Rodrigues


Daquilo que revela a pintura de Carlito Rodrigues captamos sua mutabilidade quântica geradora de seus campos pictóricos e de sua virtude ao múltiplo sendo o mesmo. Esse é um dos caminhos possíveis para a entrada na pintura de Carlito que denominamos aqui de mutabilidade quântica, desde que se afirme nesta expressão o paradoxo do sentir-pensar fundamental. “O que em mim sente esta pensando”, diria Fernando Pessoa. Tal mutabilidade é da ordem de uma descontinuidade intensiva e de uma quantização, mas que só é deflagrada na experiência própria de cada espectador. Em sua retina. Em seu corpo. Pintura que metaforiza, por meio de articulações sígnicas, a experiência quântica, em que tal acontecimento pictórico surpreende o olhar com seus deslocamentos no espaço-tempo da pintura. Seus quanta sígnicos alimentam nossas incertezas na busca de sentidos. E nesse campo de possibilidades, para usar uma expressão cara a Umberto Eco em seu Obra Aberta, requer um inevitável perder-se sobre a totalidade do acontecimento-pintura engendrado para que possamos desfrutar de suas felizes e intrincadas construções.

Estabelecemos, assim, uma relação entre Pintura e Física em que pese o trânsito conceitual, tal como fora estudado por Eco na obra acima citada, denominando a obra de arte de metáfora epistemológica, enquanto esta infere, de um certo modo, uma equivalência entre a práxis artística e a científica. Eco a certa altura diz que o que interessa é “a relação entre um modo de explicar operativamente os processos físicos e o modo de explicar operativamente os processos de produção e fruição artística. Relação, portanto, entre uma metodologia científica e uma poética (explícita ou implícita)”.Relação esta que emerge como a pedra de toque deste olhar sobre a obra do pintor carioca; ou, um outro modo de sentir-pensar suas construções poéticas.

Desde a descoberta por Max Planck no início do século XX de que a emissão de energia dos átomos são liberadas em múltiplos discretos, ou pequenos pacotes, de uma quantidade fundamental e não de modo contínuo como se pensava, dando início às pesquisas que vieram a formar a teoria quântica, esse modo de entender o universo subatômico possibilitou novos modos de experimentar o próprio conhecimento, de entender nosso próprio mundo. A práxis artística desse período intensificou sua relação com procedimentos científicos, e as descobertas da ciência contribuíram de um modo decisivo para que a relação entre ambos os conhecimentos fosse aprofundada.

É sabido que as produções modernas do início do século XX foram amiúde influenciadas pelas próprias técnicas científicas, como por exemplo, as descobertas na área da Ótica que impulsionaram o impressionismo e pós-impressionismo principalmente com Seurat e Cézanne, e posteriormente com as vanguardas artísticas; a contribuição científica foi decisiva até às subseqüentes experiências da arte tecnológica, só para ficarmos no âmbito da pintura. Desse modo, o que intuímos, desde uma relação íntima com a pintura de Carlito, nos levou ao encontro deste percurso estético-científico revelados aqui.

Encontramos na obra do pintor carioca um procedimento que afirma, na mediação dada pelos processos fruitivos do espectador, aquela mutabilidade quântica referida a pouco. Atentando para o modo como os signos aparecem gerando um impressionante deslocamento retiniano. Os quanta de cor-forma pulsam no tempo: fenômeno marcado pelo modo como o pintor engendra seus signos em saltos quânticos de cor-forma no campo pictórico que tem à sua disposição, e isso se verifica fortemente na medida em que a experiência do olhar forja-se num movimento intensivo.

Deslocamentos e mutabilidades se efetivam numa concreta alteração. O olho tenta aquietar-se numa determinada partícula para lhe surpreender a direção, a velocidade mas tudo se altera, pois nosso movimento determina a própria configuração espacial a que nos voltamos. Adentramos o princípio de incerteza de Heisenberg, princípio presente na física quântica, em que a notação dos dados da manifestação de um certo evento se verifica apenas enquanto probabilidade. Diz Heisenberg: “Deve-se, todavia, chamar atenção ao fato de que a função de probabilidade, por si mesma, não representa um curso de eventos, no correr do tempo. Ela representa uma tendência para a ocorrência de eventos e nosso conhecimento desses eventos. Dada uma função de probabilidade, ela somente poderá ser ligada à realidade se uma condição essencial for satisfeita, a saber, se uma nova medida for feita para determinar uma certa propriedade do sistema”. A manifestação desse curso de eventos evidenciando o sentido estético da obra, apreendido desde um a priori temporal, é fundamentalmente impossível, pois a pintura surpreende-nos sempre com a possibilidade de um devir que caracteriza sua natureza intrínseca. Os sentidos da pintura só por probabilidade são possíveis de serem encontrados. Eles se alteram de espectador para espectador. A obra revive descontinuamente. A nova medida é o equivalente de um novo olhar sobre o sistema-obra. Assim, revertemos aqui o princípio de incerteza de Heisenberg num princípio de incerteza pictórico, captado no modo próprio como a percepção tenta um significado mais objetivo, pois que ele se abre numa gama de possibilidades e de encontros com outros lugares, inviabilizando toda e qualquer afirmação fechada acerca do universo pictórico em ação.

Estamos diante de jogos perceptivos que comandam a experiência do olhar. Os deslocamentos e pulsões do espectador são capitais no encontro com a pintura de Carlito. É nesse movimento que ela aumenta em potência. Numa primeira visada tudo parece o mesmo, mas na medida em que o tempo decorre é que ganhamos em descoberta. Aquele mesmo reverte-se em múltiplo e tudo se intensifica. O que antes parecia fácil apreender, amplia-se gerando armadilhas para o olhar. E nesses deslocamentos do olho sobre o campo pictórico surge uma outra entrada na obra de Carlito, que se dá por meio de uma conexão construtiva herdada da tradição moderna, especificamente de Cézanne.

Por meio da modulação de cores o pintor francês produziu um espaço pictórico completamente original em que as pinceladas, os pacotes de cor-forma, eram distribuídos no plano, engendrando uma totalidade, uma espécie de bloco-pintura em que tudo se fundia e se amalgamava. Se tomarmos, por exemplo, uma Montanha de Santa Vitória (1905), teremos a perfeita noção de que o modo de conceber o espaço afirma a pintura na sua dimensão de conhecimento autônomo. Que seus vínculos com o real tornaram-se cada vez mais distantes. Uma temporalidade e espacialidade que não requer mais o encontro com os dados da natureza, mas sua efetiva relação com o pensamento-pintura. Verifica-se assim uma técnica em que a sensibilidade e o pensamento corroboram um modo de ver a paisagem, a natureza. É o que Merleau-Ponty diz de Cézanne: “Para ele a linha divisória não está entre “os sentidos” e a “inteligência”, mas entre a ordem espontânea das coisas percebidas e a ordem humana das idéias e das ciências. Percebemos coisas, entendemo-nos a seu respeito, nelas ancoramos e é sobre este pedestal de “natureza” que construiremos ciência.” Há assim em Cézanne uma clara consciência dos processos de concepção da pintura associados a uma época em que o pensamento científico é determinante.

Não só por conta de uma onipresença de modelos científicos insurgentes, ligados a uma visão positivista do mundo, mas, sobretudo, de uma superação de determinados princípios e práticas artísticas carreadas pelos métodos científicos. Como observa Roland de Azeredo Campos, Cézanne “obtém a tridimensionalidade a partir do plano e não do ponto, destacando e geometrizando porções da paisagem, que adquirem assim individualidade e configuram ângulos de visão diversos, salientados por alternâncias de tons, em estreita conivência. Isto remete à questão da simultaneidade e dos diferentes pontos de vista de observadores inerciais (quanto ao tempo e às distâncias) na relatividade restrita”. Um acento, portanto, nas formulações científicas que circundam o processo de criação cezanniano, profundamente antenado com as redes de acontecimentos científicos que explodem e transformam o tempo histórico. Teoria da Relatividade e Física Quântica de mãos dadas gerando e amplificando os signos co-moventes da Arteciência. A pintura de Cézanne vai resultar numa revolução pictórico-espacial de amplo impacto para toda a pintura moderna.

E é a partir desta conexão outra com Cézanne que situamos a pintura de Carlito, como herdeira de todas aquelas pesquisas que do Cubismo, passando pelo Abstracionismo Sensível e Geométrico, desembocaram nas tendências geométricas contemporâneas, criando uma espécie de linha histórica descontínua da pintura. E deste ângulo adjacente, a pintura de Carlito faz jus àquela herança moderna. As marcas de um modus operandi cezanniano coloca sua pintura como uma forte presença ativadora daquelas experiências do passado. Mesmo quando Carlito surpreende-nos com os grafismos de suas vivências sócio-históricas espalhados pelas obras: estes se insinuam apenas como sutis conexões com o real, pois sua condição emerge daquelas terras de lugares movediços[8] que vislumbramos outrora. E a quantização emergente em cada olhar, deflagra um distanciamento com aquelas memórias e histórias recriando-as em estados deslocados, prenhes de ambigüidades a reinvestirem-se de energias novas. Não há um lugar estático, apenas deslocamentos, o que permite outras descobertas a desinvestirem as experiências do olhar de seus condicionamentos pelo modo próprio com que somos flagrados pelo evento pictórico, pois constantemente somos levados a definir os sentidos estéticos num a priori temporal, por força de nossa necessidade de definição acabada de certos fenômenos.

Dos signos da física com seus quanta explosivos nascidos no início do século XX. Dos pequenos pacotes de cor-forma cezannianos reeditados por atavismo (in)consciente nas entranhas do bairro do Cosme Velho, de onde Carlito enquadra da janela de seu atelier, com seus olhos de hoje, sua Montanha de Santa Vitória: o Corcovado. Da formulação de seus grafismos de um suposto Rio que se foi. De sua intensa espacialidade do agora, quantizada em cores vívidas e descontínuas, é que nasce a beleza sóbria, leve e ao mesmo tempo densa (eis mais um paradoxo pictórico) dos pincéis de Carlito. Revelando que o poder da pintura como cosa mentale ainda se presentifica, em sua racionalidade descontinua, em quanta de energia pictórica a produzir beleza e beleza infinitesimal. Ad Infinitum.

. Por Luizan Pinheiro, doutorando em História e Crítica de Arte no PPGAV/EBA/UFRJ, professor da FAV- Faculdade de Artes Visuais do ICA/UFPA (Instituto de Ciências da Arte da Universidade Federal do Pará)

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