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30/03/2007 - 07:44

Na China a Lei de Propriedade atende às classes urbanas emergentes, mas deixa zona rural de lado

Perfil traçado por Isabela Nogueira, doutoranda em Economia pela UFRJ e professora de Relações Internacionais da PUC-Rio. Foi coordenadora executiva do Conselho Empresarial Brasil-China.

Depois de quase 14 anos em debate e de um dos processos legislativos mais difíceis e controversos da história do país, o Congresso Nacional do Povo transformou em lei a garantia à propriedade privada na China. Ainda que, de imediato, a nova legislação não provoque efeitos econômicos radicais (trata-se da formalização legal de algo que, no cotidiano das cidades, já é vivenciado), no plano político e simbólico seu impacto é dos mais profundos. Ao mesmo tempo em que atende à demanda da classe média urbana por segurança em relação aos bens que vem acumulando, o novo marco jurídico assegura a propriedade privada em um país que tanto tem se esforçado em se apresentar, ainda que retoricamente, como socialista.

Antes da lei, o usuário de um imóvel urbano conseguia do governo não o direito à propriedade do bem, mas o direito ao seu uso entre 40 e 70 anos. Após esse período, o direito ao uso poderia ser renovado. Na prática, a confiança dos agentes na renovação era tamanha que nenhum imóvel sofria desvalorização pouco antes de seu prazo de renovação. Ao contrário, mesmo sem deter a propriedade de suas casas, apartamentos, estabelecimentos comerciais e plantas industriais, a classe média emergente, os empreendedores chineses e estrangeiros e os especuladores têm inflado a suposta bolha do mercado imobiliário das grandes cidades, empurrando os preços para cima.

É nesse sentido que a nova lei terá impacto prático reduzido. É de se considerar que a defesa da propriedade possa aumentar a segurança de investidores nacionais e estrangeiros, mas, ao mesmo tempo, é inegável que o mercado imobiliário não sofreu nenhuma crise de confiança até agora – e o risco iminente de formação (senão a formação já de fato) de uma bolha especulativa é prova disso. Havia uma crença difundida no mercado de que mesmo sem a garantia à propriedade, o governo central renovaria os títulos de uso de propriedades urbanas sem constrangimentos.

A partir de 1º de outubro de 2007, quando a legislação entrará em vigor, a propriedade privada será não só respeitada, como terá o mesmo status jurídico da propriedade estatal e coletiva. Do ponto de vista prático, ao invés de negociar a compra e venda de seus títulos de uso, os agentes negociarão seus títulos de propriedade. E em caso de desapropriação por interesse público, a compensação terá que ser equivalente ao preço de mercado do bem. Do ponto de vista simbólico, por sua vez, um dos consultores que auxiliou na redação do projeto, o professor Jiang Ping, da Chinese University of Politics and Law, resumiu que o grande mérito da nova lei está em “incentivar as pessoas a buscar riqueza legalmente, e de maneira protegida”.

Propriedade privada não vale para a zona rural – O que não muda com a nova legislação é a posse da terra, que continua nas mãos do Estado chinês. Nas cidades, essa definição será, nesse momento, simples formalismo jurídico.

A classe média, principal beneficiada, terá a garantia jurídica de que seus bens passarão para seus descendentes. A construção civil e os empresários, por sua vez, tendem a compartilhar o aumento da confiança e podem assistir à simplificação de seus procedimentos de compra e venda.

No meio rural, entretanto, onde o bem fundamental é a própria terra, quase nada muda, e a propriedade privada não existirá mesmo com a nova legislação.

A propriedade dita coletiva será mantida no campo, sendo gerenciada pelos comitês de vila. Os 800 milhões de moradores das áreas rurais continuarão, portanto, dependendo dos comitês locais para renovar, a cada 30 anos (prazo bem mais curto do que nas cidades, onde hoje pode chegar a 70 anos) suas licenças de uso da terra.

Em algumas províncias, os membros dos comitês de vila são eleitos democraticamente, por meio de voto secreto. Há, segundo estudos políticos recentes, esforços explícitos do governo central chinês para que esse processo se amplie, na tentativa de reduzir as insatisfações no campo. Na prática e na grande maioria das regiões, no entanto, líderes locais mais fortes continuam impedindo ou fraudando eleições locais, a fim de garantir sua própria permanência no poder. Esse esquema de corrupção e de fortalecimento dos caciques locais é uma das causas fundamentais de instabilidade no campo. Sob o regime de propriedade coletiva, os camponeses ficam expostos a subornos e expropriações injustas por parte de funcionários locais interessados em vender as terras para empreendimentos maiores. Oficialmente, o governo central admite que houve 23 mil “incidentes de massa” na China em 2006, a maior parte em função de insatisfações no campo geradas por disputas de terra.

Por outro lado, especialistas chineses que defendem o governo central alegam que a propriedade privada nas mãos dos camponeses só aumentaria a concentração da terra no campo. E mais: terminaria expulsando de vez os camponeses de suas regiões. Novos empreendimentos industriais têm migrado com intensa freqüência para o interior da China em busca de terra e mão-de-obra mais baratas, e os camponeses com posse privada seriam mais facilmente seduzidos pelas ofertas de conglomerados nacionais e internacionais interessados em comprar terra.

Debate público – Além de representar um novo marco jurídico, a Lei de Propriedade inovou também em seu processo de confecção na medida em que rompe com o padrão no qual líderes chineses discutem grandes temas à porta fechada.

Desde 2005, quando o projeto foi posto em discussão, cerca de 14 mil petições foram enviadas ao Congresso. A mais famosa delas, assinada por mais de três mil nomes (incluindo alguns ex-ministros e 50 professores), dizia que o projeto era inconstitucional, aumentava a disparidade de renda e favorecia a acumulação de riqueza por parte de empresários e funcionários governamentais corruptos.

O argumento da inconstitucionalidade da lei é, no entanto, incongruente. Em 2004, uma emenda constitucional já garantia que o uso da propriedade privada não seria ameaçado. Juristas argumentavam, no entanto, que a Constituição tem na China um caráter eminentemente prescritivo e que, desde então, estavam à espera de uma alteração legal de fato. A lei veio, atendendo às pressões da classe média, mas sem nenhuma pretensão de aliviar as crescentes tensões no campo./ CEBC

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