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11/07/2009 - 08:16

O Brasil e a Crise Global


Em 1985, o brilhante diretor de cinema Terry Gilliam escreveu e dirigiu o longa de ficção científica Brazil. O filme há tempos ganhou o status de Cult. Tinha como tema central a música Aquarela do Brasil, uma das melodias brasileiras mais famosas de todos os tempos, composta por Ary Barroso em 1939. De acordo com Barroso, a música visava a ostentar “toda a grandeza, valor e riqueza” das terras brasileiras. O Brasil era o paraíso pintado em aquarela – e continua sendo até hoje. Foi razão mais do que suficiente para que eu aceitasse o gentil convite de Ulisses Reidel Resende e Flavio Scharaibhand para comparecer à Conferência sobre a Economia Global aqui em São Paulo.

De certa forma foi uma oportunidade muito real de me refugiar das turbulências da história financeira global na aquarela do Brasil. A vida é melhor no Brasil, em parte, é claro, por causa do sol, que aqui parece brilhar mais forte do que em qualquer outro país do mundo. Em parte também pelo seu povo bem-humorado. E em parte devido ao sucesso do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Independentemente da sua afiliação política, não há como negar que o presidente Lula, re-eleito em 2006 por grande maioria, é o presidente mai popular da história recente do Brasil. Também não há como negar que este ex- metalúrgico e líder sindical governa o mais longo período de crescimento econômico do Brasil em três décadas, alcançando em 2008 um rating de grau de investimento. Em torno de 19 milhões de brasileiros deixaram a miséria. O Lula tem sido defensor dos países em desenvolvimento nas negociações comerciais entre as nações, enquanto ao mesmo tempo age como moderador na América latina. Por conseqüência, o perfil internacional do Brasil foi elevado de forma notável.

Está não é minha primeira visita ao seu país encantador. Me apaixonei pelo Brasil e seu povo há muitos anos, quando em 21 de fevereiro de 1994, fui convidado pela primeira vez pela Bolsa de Mercadorias & Futuros, a BM&F. De fato, janeiro passado, o grupo CME finalizou seu acordo transmissão de ordem com a BM&F, a quarta maior bolsa de futuros do mundo (agora a BM&F Bovespa). As duas bolsas irão integrar suas plataformas de informática para roteamento de dados e para a operação de produtos eletrônicos. Enquanto a CFTC (órgão regulador de mercados futuros) ainda não emitiu uma carta notificando investidores americanos para que possam operar na Bovespa, os negócios já começaram a fluir. Considero este acordo entre nossas bolsas um testemunho à internacionalização do Brasil sob Lula.

Porém nada disso deve sugerir que o Brasil se viu livre dos efeitos da recessão global que vem afetando o mundo. De fato o Brasil hoje sofre com o que pode se chamar de uma recessão técnica. Alguns especialistas especulam que o crescimento do PIB irá cair de 5,1% em 2008 para –0,1% a -1,7% em 2009. Três fatores ainda ameaçam o Brasil: a recessão global, a piora nos mercados de trabalho, e uma forte redução no crédito. É um panorama comum ao mundo todo. Em cada lugar que visito, a pergunta é a mesma: como chegamos a este ponto? O que lançou o as bolsas mundo afora para “bear markets” e economias em quedas que nos lembram ao crash de ’29? São perguntas pertinentes que devem ser respondidas, senão por outra razão do que ao entender as respostas estaremos mais bem equipados para encontrar soluções. Para mim e para muitos especialistas financeiros, as causas da crise global não oferecem nenhum mistério. A crise não aconteceu da noite para o dia.

Devemos começar por declarar que a causa primária do boom e a crise conseguinte foi dinheiro fácil. Durante os últimos dez anos os bancos centrais permitiram que o mundo esbanjasse liquidez, certamente na Europa, na Ásia, e definitivamente nos Estados Unidos. O FED, banco central americano, segurou a taxa de juros em 1%, especialmente entre junho de 2003 e junho de 2004 – bem abaixo dos níveis e recomendações históricos. Dinheiro fácil levou a excessos globais e a uma pirâmide de dívida. Na minha opinião, esta foi a principal causa de grande parte dos problemas.

Em segundo lugar, uma vez que dinheiro fácil permite à estruturas de juros baixos, houve uma busca frenética por investidores – empresas, bancos, empreendimentos financeiros e indivíduos -- mundo afora para melhorar o retorno sobre seus investimentos; uma conseqüência previsível. Também não é segredo que quanto maior o retorno maior o risco. Uma das maneiras de buscar retornos maiores foi através de derivativos de balcão. Enfatizo o fato de serem negociados em balcão pois nenhum destes instrumentos foi operado em bolsas de futuros fiscalizada por órgãos reguladores. Isto é importante porque nossos mercados de futuros operaram de forma exemplar durante a crise. Devido às proteções embutidas no mercado de futuros, como por exemplo, clearings[1] como contraparte central garantidora, exigências de margem, e pagamentos diários em mark-to-market[2], os mercados futuros não sofreram falências, inadimplência, ou bailouts pelo governo. Fomos o exemplo do que deu certo e atualmente nosso modelo é solicitado e copiado no mercado de derivativos de crédito (CDS- credit default swap market).

Porém a história foi bem diferente no mercado de derivativos de balcão. Começando por volta de 1988, bancos de investimento encontraram maneiras de apresentar e vender trilhões de dólares em empréstimos aos poucos para investidores ao redor do mundo. O processo começou com a apresentação de um derivativo financeiro conhecido como Collaterized Debt Obligation – CDOs (obrigações de dívida garantida por ativos), ou Structured Investment Vehicles – SIVs (veículos de investimento estruturados). O valor e pagamento destes asset backed securities (títulos lastreados em ativos) eram derivados de um portfólio de ativos correlatos atrelados ao instrumento; por exemplo: títulos corporativos, títulos de mercados emergentes, títulos lastreados em ativos, mortgage backed securities (títulos lastreados em créditos hipotecários), e créditos subprime, REITs (fundos de investimento imobiliários), empréstimos de bancos e empréstimos universitários. Havia pouca fiscalização. Durante a próxima década e meia, os CDOs e SIVs se tornaram o segmento com maior crescimento dentre o mercado de títulos sintéticos lastreados em ativos e eram vendidos aos investidores como derivativos de balcão. Quanto maior o risco atrelado ao CDO ou ao SIV maior o retorno para o investidor. As agências de rating estavam dando notas sem entender totalmente o risco envolvido. Foi um desastre.

Não estou sugerindo que os derivativos de balcão sejam proibidos ou mesmo temidos. Isto seria impensável. De fato, se estes não existissem no mercado atual, teriam de ser inventados pois sem eles estaríamos de volta a Idade da Pedra. Para a grande maioria de gestores financeiros, estas ferramentas de gerenciamento de risco funcionam excepcionalmente bem. Porém é essencial que os derivativos de balcão apresentem fiscalização e transparência até certo ponto, e que os riscos correlatos sejam divulgados. Acredito que as falhas no sistema de fiscalização por órgãos reguladores estão prestes a serem sanados.

A terceira conseqüência do dinheiro fácil foi o “alavancamento” (leverage) imprudente que aconteceu no mundo inteiro dentro de alguns empreendimentos financeiros, especialmente em hedge funds e bancos de investimento. Nos Estados Unidos, o governo desempenhou papel central: em 2004 a SEC (Securities and Exchange Commission) mudou a norma regendo a relação dívida-caixa, ou índice de endividamento, historicamente de 12 para 1, e deixou subir astronomicamente para 40 para 1. Acho que não preciso explicar os efeitos que este ato tiveram sobre a gestão de risco e dívidas. Mas mais uma vez, foi uma conseqüência previsível.

Em quarto lugar, o refinanciamento das hipotecas, junto a empréstimos subprime. Juros baixos e adjustable rate mortgages – ARMs (hipotecas a taxa de juros variáveis) geraram uma indústria de refinanciamento gigantesca, que se alastrou como fogo e deu vida à bolha imobiliária. As hipotecas subprime deram ainda mais força à crise imobiliária que veio após a bolha estourar. Os empréstimos subprime eram práticas fundamentadas no nobre ideal de que todos devem ser proprietários de seus próprios lares. Um ideal nobre, porém ilusório. Em outras palavras: nem todos podem pagar hipotecas, para alguns sempre será caro demais. Enquanto o valor dos imóveis continuava subindo, como fizeram baterem o teto em meados de 2006, não parecia importar se o dono podia de fato pagar a hipoteca ou não. Este sempre teria a opção de refinanciar a hipoteca com uma avaliação ainda mais favorável de seu imóvel. Este fato acabou por reduzir o valor patrimonial das propriedades e aumentou o risco ao mercado imobiliário como um todo. Quando a bolha estourou, os preços despencaram, e milhares de proprietários não conseguiam mais manter os pagamentos de suas hipotecas, passamos por uma epidemia de inadimplência e execuções. O mercado imobiliário em crise se tornou uma das principais causas da recessão que estamos sofrendo. Mais uma vez, um fenômeno previsível.

Em quinto lugar, além dos empréstimos subprime, tínhamos o Fannie May (Associação Hipotecária Federal) e o Freddie Mac (Sociedade Federal Hipotecária de Crédito Habitacional). O objetivo destas empresas garantidas pelo governo americano (GSEs – government sponsored enterprise), criadas em 1968, era de manter a taxa de juros baixa para possibilitar o sonho da casa própria. Mais uma vez, nobres idéias. Nos últimos anos, ambas estas GSEs eram incentivadas pelo congresso americano a continuarem comprando hipotecas subprime.

Em sexto lugar, a doutrina “Grande demais para falir” foi, em minha opinião, foi muito mal administrada. No mercado livre, ao menos em teoria, a falência de qualquer empreendimento é vista como uma parte natural e admissível do processo. O governo jamais deve interferir para salvar uma empresa em apuros. O investidor que investiu mal ou com negligência sofrerá a perda de seu dinheiro. A falência portanto seria a decorrência “natural” dos eventos. Mas, como todos sabemos, uma política admissível na teoria não necessariamente é admissível na prática. Quando o governo conclui que há perigo de um risco sistemático, ou seja, que possa derrubar todo um sistema econômico a partir da falência de um empreendimento muito grande, o governo se sente na obrigação de intervir. Isto vem acontecendo durante toda a história da humanidade. Mas devo alertar: se o governo conclui que há de fato necessidade de intervir, deve se certificar que a) existe de fato um risco sistêmico, e b) as regras da intervenção fiquem bem claras.

No caso da Bear Stearns, o governo americano julgou que a empresa era grande demais para ir a falência. Porém, alguns meses depois julgou que a Lehman Brothers poderia ir a falência e interveio. Depois, no caso da AIG (American International Group), mudou o rumo mais uma vez. Nunca me convenci que a Bear Stearns era grande demais para falir, nem que a Lehman Brothers não era. Me convenci apenas de que não existe atualmente regras claras que ditam quando nosso governo vai ou não vai intervir. Esta falta de consistência fez com que o mercado perdesse a fé, o que também foi uma conseqüência previsível.

E, por fim, em sétimo lugar, a ganância. Alguns bancos comerciais, bancos de investimento, hedge funds e outras instituições financeiras aproveitaram a falta de fiscalização e normas frouxas. Na sua ganância por retornos mais altos abandonaram as boas práticas comerciais e deixaram que o risco se tornasse uma coisa barata. Os controles de gerenciamento de risco foram corrompidos a medida que a ganância substituiu o bom senso. Assim, apesar de grande parte das causas da crise serem provenientes do governo, o setor privado também contribuiu à crise. Mas a ganância é um traço humano, e portanto previsível.

Fica claro que não houve apenas um culpado pela crise econômica global. Enquanto houveram outros fatores, os sete pecados que enumerei acima são, na minha opinião, as causas primárias da crise. Há quem lhe dirá que a crise era inevitável de qualquer maneira, independentemente do que fizéssemos. Esta é uma teoria pouco conhecida fora do mundo financeiro – são as chamadas ondas de Kondratiev. O economista russo Nikolai Kondratiev foi o primeiro a apresentar, em 1925, na sua obra “As ondas longas da conjuntura”, a idéia que a civilização humana vive grandes ciclos econômicos que se repetem a cada cinqüenta ou sessenta anos, e que nada pode impedir estes ciclos uma vez que são resultado de ações humanas. Esta teoria foi retomada mais tarde por dois economistas holandeses, Jacob van Gelderen e Samuel de Wolff. Kondratiev previu o crash de 1929 e muito do que ocorreu após isso. Observou que o desenvolvimento econômico acompanha ondas longas de aproximadamente 40 a 60 anos de duração. Estes ciclos são compostos de períodos alternativos de crescimento notável com períodos de lentidão. Ao contrário de modelos a curto-prazo, que vem sendo aceitos como dogma financeiro desde o século XIX, as ondas longas de Kondratiev não foram adotadas por economistas mais ortodoxos. Apesar disso, Kondratiev tem sido curiosamente certeiro. De acordo com o russo, o desenvolvimento da economia global segue o mesmo padrão que as estações do ano: primavera, verão, outono, inverno. Durante a primavera, a economia apresenta melhoras, o verão representa aceleração e prosperidade, o outono um período de recessão, e o inverno depressão. E estes ciclos econômicos vem acontecendo desde o começo do século XIX, se encaixando perfeitamente nas ondas de Kondratiev. A onda mais recente foi calculada como tendo início logo após a segunda guerra mundial, no final dos anos 50, e portanto completa suas quatro estações por volta de 50 anos mais tarde, em 2008.

Se a humanidade seguir seu padrão habitual de civilização e declínio, talvez realmente haja pouco que possamos fazer para interromper estes ciclos. Mas se há uma boa notícia nesta observação é que um colapso do sistema foi impedido. Isso dito, não sou daqueles que acredita na curva de recuperação em V. Infelizmente, acredito que a primavera de Kondratiev ainda irá demorar alguns anos para chegar. Não vejo o fim da crise de crédito ainda. Acredito que a crise financeira ainda não acabou, e que haverão mais falências por vir. A recente melhora nos resultados apresentados, para mim, não deve ser tido como razão para o otimismo, mas como a volta à normalidade após um período de muita incerteza no mercado. Para mim, o fato que as notícias são “menos ruins” não equivale o fato que elas são notícias “de recuperação”. Os green shoots, sinais de recuperação econômica em período de recessão, que estão em debate em vários círculos financeiros, são, na minha opinião, o resultado de reabastecimento do estoque. Estoques mundo afora foram reduzidos e só agora a produção voltando a tona. Só que desta vez o consumidor americano não têm condições de ser o motor propulsor da recuperação, como foi em recessões passadas. Na minha opinião, este papel caberá aos BRICs, com exceção da Rússia. A China, o Brasil e a Índia são países jovens e exuberantes que estão crescendo.

Aliás, a teoria de Kondratiev foi rejeitada pelos líderes soviéticos, e suas conclusões foram vistas como uma crítica aos planos de Stalin para a economia russa. Portanto Kondratiev foi enviado a um gulag, onde recebeu a pena de morte.

Deixe-me concluir com um pensamento de extrema importância: existem aqueles que veem a recente crise financeira como uma falha do sistema de mercado livre. É um sentimento que se ouve com bastante freqüência, e é totalmente falso. Sim, é verdade que em algumas circunstâncias se provou a necessidade de maior fiscalização por órgãos reguladores, mas não foi a falta de fiscalização que levou à crise. Muito pelo contrario. As causas que enumerei acima têm, em grande parte, sua origem no governo. Foi o governo, e não o setor privado, que criou um ambiente de dinheiro fácil; foi o governo, e não o setor privado, que permitiu que o índice de endividamento aumentasse tanto, criando um alavancamento insustentável; foi o governo, e não o setor privado, que incentivou empréstimos subprime para uma comunidade que não tinha os recursos financeiros para pagar suas hipotecas; foi o governo, e não o setor privado, que permitiu que o Fannie May e o Freddie Mac comprassem papeis de hipoteca subprime, criando uma noção falsa sobre os riscos envolvidos. O pecado original foi a intervenção do governo, e não o mercado livre.

Em outras palavras, não culpe a Eva por comer a maça.

. Por: Leo Melamed, economista e consultor de mercados futuros [www.leomelamed.com/index.html ] | (Amcham-São Paulo)

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