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19/11/2009 - 11:40

Sebastião Nery devassa a própria vida


Como Pedro Nava e Graciliano Ramos, o polêmico jornalista volta ao passado para reviver as memórias de seu tempo. E conclui: “Não vivi em vão”.

Todo grande personagem é inspirado por uma entidade que o orienta, auxilia ou abandona. Napoleão por sua estrela (da qual Josefina seria a personificação), Sócrates por seu demônio, Joana d’Arc por suas “vozes”, Sebastião Nery por sua nuvem. Uma nuvem que, por sinal, fez chover na sua horta, tornando-o um dos mais respeitados e polêmicos jornalistas brasileiros e cronista-mor da nossa época, além de professor, advogado, político, e, sobretudo, homem de letras, na acepção mais ampla do termo.

Com o presente livro, “A Nuvem”, 16º em sua obra, primorosamente editado pela Geração Editorial, Sebastião Nery também merece agora figurar entre os memorialistas do calibre de Graciliano Ramos e de Pedro Nava, mas nunca de Brás Cubas, pois a despeito da qualidade machadiana do seu estilo, estas memórias nada têm de póstumas; ao contrário, vibram e pulsam com a energia vital que amplamente tem desmentido, ao longo de 77 anos, o “defuntinho”, como o frágil recém-nascido Nery foi apelidado, tão improvável parecia a sua sobrevivência.

“A Nuvem” inicia-se em 1944, quando o precoce menino Sebastião é levado de sua Jaguaquara natal para o seminário, e encerra-se quando do seu retorno da adorada Paris para o Brasil, em 1994.

Proporcionando-lhe uma formação acadêmica invejável, após dotá-lo do intenso amor ao saber que resultou em erudição caudalosa, a nuvem de Nery conduziu-o pelo mundo inteiro como jornalista e adido cultural, e por todo o Brasil nas campanhas políticas mais efervescentes da nossa volátil democracia, como as de Juscelino em 1955 e das Diretas em 1984.

Episódios prosaicos como o primeiro contato com luz elétrica aos quatro anos ou a descoberta do amor, e outros nem tanto, como o encantamento juvenil pelo comunismo e a prisão sob a ditadura militar, tornam-se instantaneamente lições de vida depois de filtrados pela enxuta e elegante prosa neryana.

Kubitschek, Brizola, Collor ganham nova dimensão uma vez contemplados pela nuvem. Aliás, poucos nesses 50 anos são os personagens relevantes da nossa história sobre quem Nery não tenha algo relevante a contar, ou mesmo, que não tenha conhecido em pessoa, todos matéria-prima inexaurível para as anedotas com que enriquece incansavelmente o folclore político nacional.

Sobre política, no entanto, este homem que foi político – deputado, conselheiro de políticos, adido cultural de governos no exterior – tem uma conclusão amarga:

“A política”, diz ele, “tem uma coisa péssima: ela atrai demais os maus, porque o poder é quem manda e quem manda no poder é a política. Quando instrumento do mal, ela duplica o mal.”

*Entrevista/Sebastião Nery .: Quando começou a traçar os primeiros capítulos do livro “A Nuvem”? Como foi relembrar essa trajetória de meio século de vida? - Livro é como um parto. As dores desse parto são antigas e contidas. Sempre soube que uma dia ia escrever este livro. Mas como ele seria de 50% de memórias de mim e 50% de memórias dos outros, eu me achava jovem demais para escrever memórias aos 50 anos, aos 60, aos 70. Mas quando fiz 75 e 55 de jornalismo, não podia mais retardar. Mesmo assim, segurei até o começo deste ano. Os 80 estão chegando perto. Como dizia Hemingway, tudo depende da primeira frase. O livro só nasce com ela. E durou meses para ela chegar. 50 anos de vida não se contam sem alegrias muitas, mas também às vezes com muita dor. Quando você deixa pelo caminho três eternos amores mortos, é muito doloroso, porque você sabe que aquilo está irremediavelmente perdido. Sobretudo sabendo que o passado é o que ficou do que passou. O que me confortou foi ficar com orgulho de minha vida. Mais do que minha incurável imodéstia já sabia. Não vivi em vão. E, como São Paulo, combati o bom combate.

O livro nos proporciona um deleite pela sua vida, que contextualiza os acontecimentos da época. Qual foi a parte mais interessante de escrever/revelar? -Foi a minha descoberta do mundo, chegar a Minas com 18 anos, sem saber nada, só as teorias que a santa, generosa e competente Igreja me ensinou. Tive que sair do zero mesmo. Tudo era novidade e inexperiência. Tive que ir pondo pedra por pedra. Ao escrever, fiquei assustado com o tanto de pedra que carreguei. E o tanto de amor que sofri. O livro é um inesgotável aprendizado de 50 anos.

. Teve algum momento da obra em que sentiu alguma “nuvem” pesada e difícil de transcrever? - Sim. Perder o primeiro amor e o primeiro filho aos 18 anos é muita dor. Quando acabei de escrever o capitulo, bem de madrugada, chorei como um tolo. E não estava chorando de tolice. É que viver é duro.

. Conte para nós como a política entrou para sua vida. O que aprendeu e desaprendeu com os nossos políticos? - Desde a escola primária, e sobretudo no Seminário, puseram-me na cabeça que a vida é uma missão. E eu fui mudando de missão. Primeiro, era ser padre, salvar almas. Mal conseguia cuidar da minha. Depois, foi ser professor. Uma aula é uma das coisas mais prazerosas que alguém pode fazer. Fiz muitos anos. Mas de repente o jornalismo simplesmente me seqüestrou, aos 20 anos. Tentei muito tempo combiná-lo com as aulas. Mas chegou uma hora em que não dava mais. E realmente não fiz mais nada na vida, prioritariamente, nesses já 57 anos, senão jornalismo. Mesmo quando me elegi vereador em Minas, fui deputado estadual na Bahia, federal no Rio, andei por Moscou, fui Adido Cultural em Roma e Paris. Dedicava-me ao mandato e às funções , mas nunca deixei de escrever um dia só, a não ser quando estava preso. Porque o jornalismo se tornou a missão maior, sempre. Nele procurei juntar o padre e o professor que não fui e o político que eventualmente fui. A política tem uma coisa péssima : ela atrai demais os maus, porque o poder é quem manda e quem manda no poder é a política. Quando instrumento do mal, ela duplica o mal.

. Mesmo viajando muito – sendo carregado pelas nuvens – você sempre esteve atento às mudanças econômicas e políticas do País. Como fazia para acompanhar o noticiário quando morou na Europa? - Na verdade eu quase não saí de Jaguaquara, da Bahia, de Belo Horizonte, do Rio. O Brasil é tão forte que, mesmo vivendo tanto tempo longe, nunca tirei um pé daqui. Mesmo morando em Paris, o sonho da minha Nuvem, sempre acompanhei tudo aqui, porque escrevia de lá mas para cá, pensando nas coisas daqui. E, terminadas as tarefas lá, voltava em cima da perna. Como dizia Gilberto Amado, quem não gosta do Brasil não me interessa.

. Alguns capítulos estão dedicados à sua trajetória jornalística. Pode nos dizer o que o trabalho como repórter, colunista, editor representa para você? Acha que os novos profissionais perderam a essência da profissão? - O jornalismo não mudou a essência da profissão. A sociedade é que mudou a essência do jornalismo. Saímos de um jornalismo só político, desde a Independência, durante muito tempo tivemos um jornalismo só partidário, cada jornal representando os interesses de um grupo político e chegamos ao jornalismo empresarial, que é a grande contradição do jornalismo atual: ele diz que defende ideias, mas defende sobretudo os interesses empresariais do grupo que é dono da TV ou do jornal ou da revista a cujo serviço põe as ideias. Como passamos do capitalismo antes comercial, depois industrial, e estamos no financeiro, a imprensa é hoje sobretudo a expressão dos interesses do sistema financeiro que está por trás de todos os grandes jornais e TVs (excetuados naturalmente os pequenos, alternativos).

. Para você, a cidade ideal seria uma junção de Jaguaquara e Paris? Que cor ela teria? - O homem não conseguiu fazer uma grande cidade mais completa e mais "vivível" do que Paris, exatamente porque Paris tem aquele ar fingidamente interiorano e no entanto sendo a maior metrópole cultural do mundo. Paris é a soma da paróquia com o Império. Cada um de nós carrega a infancia onde nasceu e os sonhos de um mundo que quer conquistar todo. Paris mistura os dois milagrosamente. Paris tem a cor da alma de cada um.

. Do que sente saudade? Para onde ainda quer ser levado? - Ficou tudo o que pude segurar. Nunca joguei minha alma fora. Tive a ventura de guardar escondido, durante meio século, sem contar absolutamente a ninguém e permanentemente alimentado por encontros no mínimo anuais, um imenso amor que que só com a morte se perdeu. E não apenas ele. Em diversas ocasiões, também outros, também imensos. Meu coração não tem do que se queixar. Durante muito tempo imaginei um dia parar tudo e só fazer literatura, romances. Mas os livros (já são 16) iam surgindo das lutas políticas, das viagens, da vida em outros países, daquela "missão" que o Seminário me ensinou e da qual nunca fugi. Estou muito bem aqui. Mas se minha Nuvem de repente ainda quiser fazer uma estripulia e me levar para mais além, ela é quem manda. Este livro é um Muito Obrigado à vida.

. [ A Nuvem: Autor: Sebastião Nery – Biografia | Formato 15,5x22,5 cms, 624 páginas.| ISBN: 978-85-6150-138-9 | Cód. Barra: 978-85-6150-138-9 | Peso: 0.6 kg. | R$ 49,90 ].

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